A imagem de Pelé caminhando com auxílio de um
andador nas TVs e na primeira página dos jornais provocou-me algumas reflexões.
A primeira e óbvia é a inexorável passagem do tempo. Edson Arantes do
Nascimento tem 77 anos e alguns pinos espalhados pelo corpo que colocam o mito
na condição de homem.
Estou lendo o excelente As Barbas do Imperador, de Lília Schwarcz. A
obra é sobre a vida de Pedro II. Logo no primeiro capítulo, a autora faz
algumas análises que podem servir para pensar no fascínio por Pelé e como sua
fragilidade física causou tanta estranheza.
A própria reportagem sobre Pelé no Jornal Nacional já escancarava este
contraste. A expressão dos olhos ainda é a mesma, mas o auxílio do andador nada
tinha a ver com o homem que comemorava o gol com um salto e um soco no ar esbanjando
capacidade atlética.
O futebol criou para Pelé a imagem de Rei. Desde os reis taumaturgos da
Inglaterra e França nos séculos XII e XIII esperam-se milagres dos monarcas. No
imaginário coletivo, Pelé era um Deus-homem, dotado de poderes sobrenaturais.
Esse mágico era capaz de criar espaços
onde não havia e contrariar a lógica dos movimentos, ao se atirar num salto
mortal e fazer um gol de bicicleta.
Segundo Lília Schwarcz, cabia a esses reis regular o curso da natureza
para o bem de suas sociedades. E foi exatamente o que fez Pelé nas Copas de
1958 e 1970. Em 1962, o Deus se chamou Mané. Nesta lógica existe a mística do
corpo santo dos monarcas.
Logo, aquele andador e as pernas ainda trêmulas nos dão impressão de uma
fragilidade que não condiz com a força de um rei. Diante desse nosso culto aos
“monarcas”, a imagem de Pelé fala um pouco sobre nós mesmos. O tempo passa até
para ele.
Pelé é inquestionável, Já o Edson dá umas vaciladas, o que é natural,
posto que sofre da mortal e falível condição humana. No entanto, achei uma
atitude corajosa do Edson a de colocar o Rei Pelé para aparecer de andador.
Talvez a dimensão humana seja a mais poderosa dos nobres.
Roberto Carlos, por exemplo, não expõe ao público as fraquezas físicas.
Sua perna amputada é um assunto tabu. Não sou ninguém para decidir o que cada um
deve expor da sua vida, mas uma atitude magnânima do rei da canção poderia
ajudar súditos que enfrentam a mesma limitação. Poderia, inclusive,
aumentar-lhes a autoestima.
Para usar as palavras de Lília Schwarcz, como pessoa e mito, o rei é um
objeto ritual, uma imagem evidente de poder. Logo, a reportagem de Pelé no JN
terminou com uma palavra de otimismo do próprio rei. Ele disse que se Tite
quiser, poderá convocá-lo para Copa da Rússia.
Todos sabem que não é bem assim, mas ninguém vai querer ser a criança do
conto de Andersen e gritar o “o rei está nu”. Em nosso mundo, em que as imagens
podem ser recuperadas, Pelé sempre terá a mística e a majestade. Nem que seja
num filme em preto-e-branco, dando um lençol num sueco atordoado.
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