Estava
no meio de um exercício na clínica de reabilitação cardíaca, quando comecei a
ouvir um diálogo. Sim, sou daqueles que recolhem fragmentos das conversas
alheias. Como já expliquei, vivo em busca de histórias, das mais vulgares às
especiais.
Voltando ao diálogo, ouço uma mulher perguntar a dois homens que
conversavam: “O Médici que ganhou a Copa do Mundo, não foi? Pé quente aquele
cara”.
Os dois homens falavam sobre reminiscências do período militar.
Como estamos em época eleitoral, estava especulando, entre um exercício e
outro, em quem eles votariam. Não consegui nada explícito, mas como quase
sempre os encontro, não será uma informação difícil de ser recolhida no
futuro.
No entanto, a expressão “pé quente” para se referir ao Médici me
chamou atenção. De fato, numa leitura superficial, o terceiro
general-presidente tinha sorte. Além do tricampeonato, houve o “milagre
econômico“ com taxa de crescimento superior a 8% ao ano, índice chinês de
aumento da atividade econômica. Não falam muito, mas posteriormente a taxa foi
recalculada para baixo e a ressaca do “milagre” foi uma hiperinflação.
Fiquei pensando se as famílias dos presos torturados e das
pessoas dizimadas no Araguaia também consideram Médici “pé quente”. Quarenta e
cinco anos depois o que ocorreu na guerrilha precisa ser explicado à população.
É importante conhecer o passado para que os erros não sejam cometidos no
futuro.
A frase da mulher na academia me fez pensar que cada um guarda
na memória o que convém. Já havia ouvido várias descrições sobre o governo
Médici, mas essa de “pé quente” foi bastante original.
O que me faz crer que a pessoa em questão tem uma certa
nostalgia pelo que aquele governo representou. Será que era sua adolescência, ou
a entrada na fase adulta? São heterodoxos os caminhos da memória.
O fato é que a classe média brasileira desembarcou do regime
militar depois do governo Médici. As metáforas de “Brasil Grande”, de “Ame-o ou
deixe-o” eram a expressão do que pensava a elite.
A supressão de liberdades como a censura aos meios de
comunicação, as torturas e o fim dos habeas corpus eram vistos como efeitos
colaterais para que o país entrasse em ordem.
No entanto, dores quando ocorridas há muito tempo, tendem a ser
esquecidas. Além do que, uma parcela significativa da sociedade tem “saudade de
tudo que ainda não viu”. Esse saudosismo tem uma perfeita encarnação, a chapa
Bolsonaro-Mourão.
Se for para pensar em termos esportivos, JK, Jango, Itamar
e FHC também foram “pés quentes”. E explorando mais um pouco o raciocínio da
senhora que exaltou a sorte do ex-presidente Médici, constata-se que o Brasil
tem mais títulos durante períodos democráticos do que em regimes de exceção.
Durante o Regime Militar a seleção brasileira amargou eliminações em 66, 74, 78
e 82.
Pensando bem, antes de exaltar a sorte esportiva de Médici, é
melhor exaltar um time que conseguiu reunir Pelé, Tostão, Gerson, Jairzinho, Rivelino,
Carlos Alberto e PC Caju.
Então, respondendo a pergunta, não foi o Médici que ganhou a
Copa. Foi esse esquadrão armado por João Saldanha e Zagallo. Presidentes não
entram em campo, não fazem gol. Aliás, suas atitudes podem até atrapalhar que
realmente impedir e atrapalhar as vitórias esportivas.
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