Às 16h35 de uma tarde calorenta típica do outono carioca, um rapaz com dois copos de cerveja vazios passou por mim e pelo meu amigo Pedro e perguntou: “a escada é aqui? Já estou tão bêbado que não tô enxergando nada”. O Pedro indicou que sim, eu disse “vai com cuidado”. O rapaz com a camisa retrô do Maestro Júnior desceu a arquibancada do Maracanã para se abastecer de cerveja. Naquele momento, o Flamengo já vencia o Athletico Paranaense por 1 a 0.
Meus amigos Pedro, Felipe, Estanislau e Rafael me convenceram a encarar uma ida ao Maracanã na tarde de domingo. Decidi aceitar a empreitada, não sem antes informá-los de uma recente fama de pé-frio, que minha mulher afirma estar me acompanhando nos últimos tempos. Eles toparam levar o azarado ao estádio e seguimos para o templo do futebol.
Quando entramos no Maraca, percebi que esse jogo seria diferente das últimas vezes que estive no estádio. Fui para trás do gol onde tradicionalmente o Flamengo ataca no segundo tempo. Lá , onde ficam as torcidas organizadas. Intrépidos, os rapazes, todos na casa dos 20 anos, foram subindo os degraus da arquibancada. Dois iam desbravando o caminho, eu no meio e outros dois na minha retaguarda. Não sei se a formação para “escoltar” o velho foi intencional, mas funcionou.
Finalmente nos alojamos num corredor entre duas fileiras, atrás de vários bandeirões. Pensei: “não vai dar para ver o jogo”. De repente entrei no túnel do tempo. Virei para o Rafael e comentei: “estou me sentindo no Circo Voador nos anos 90, vou ver o show todo em pé e ainda estou sentindo um cheiro característico". Bem, vamos ver o que o STF decide sobre o cheiro que senti. O primeiro tempo transcorria com a habitual falta de criatividade do time de Abel Braga, que só chegou ao primeiro gol depois que o sistema defensivo do Athletico errou uma saída de bola. Gabigol aproveitou o passe e acabou derrubado dentro da área. O juiz marcou prontamente, mas o VAR se enrolou e o árbitro teve que olhar o monitor num lance que do outro lado do campo a gente percebeu que foi pênalti. Por fim, a falta foi confirmada. Para a sorte de quem estava no Maracanã, Gabigol, e não Diego, bateu a penalidade e abriu o placar.
Depois de uma pressão do Athletico nos últimos minutos, o juiz apitou o fim da primeira etapa. No intervalo, Estanislau percebeu que quatro cadeiras ao nosso lado ficaram vagas. Éramos cinco, mas meus amigos entenderam minha avançada idade e tacitamente concordaram que um dos lugares seria meu. E aí mais um desafio. Devido ao estado lastimável das cadeiras, não dá para sentar. O torcedor que fica naquele setor tem que sentar no encosto e colocar os pés no assento. Exigindo um equilíbrio, que confesso, achei que não seria capaz de ter. Depois de 15 minutos, me rendi e sentei onde todos depositavam os pés.
No começo do segundo tempo já era possível ver que seria bem sofrido. O time do Paraná foi pra cima do Flamengo, encurralando o previsível time de Abel Braga. Mas isso não desanimava a torcida. Aliás, reconheci vários sucessos, adaptados aos cantos da arquibancada, Whiski a Go Go e Primeiros Erros, por exemplo. Não sei reproduzir as versões dos torcedores. Há óbvias loas ao rubro-negro e palavras hostis aos outros times do Rio.
Em pé do meu lado, pisando onde deveríamos estar sentados, Felipe fez um comentário típico de quem está acostumado a assistir o jogo no estádio: “o Athletico está começando a gostar do jogo”. Dez segundos depois, se tanto, os paranaenses empataram com Marcelo Cirino. E a torcida que até aquele momento apoiava, começou a hostilizar Abel e o time em campo. Nada é tão ruim que não possa piorar. O Athletico atacava e um jogador caiu na área. Do outro lado do campo, nos olhamos e pensamos: “ foi pênalti”. Na era do VAR, não tem como, o vídeo vai dedurar. Depois de levar novamente um tempo desnecessário para marcar o obvio, o juiz confirmou a penalidade. Com a “lei do ex” a todo vapor, Marcelo Cirino bateu e fez 2 a 1 para os visitantes.
O caldeirão ferveu de vez. A torcida se irritou e começou a mandar Abel para lugares recônditos da anatomia humana e dizer que o time rubro-negro era sem-vergonha. Eu olhava para os rapazes que me chamaram para o jogo e pensava: “eles estão arrependidos, minha mulher estava certa, depois de um determinado tempo me transformei inapelavelmente em um pé-frio”. Torcedor sempre pensa que a culpa é daquela camisa que deixou do avesso, ou da porcaria da meia que ele trocou.
A torcida berrava a plenos pulmões: “está faltando Arrascaeta nessa p...”. O que fez Abel? Colocou Rodinei no lugar de Pará. “Burro” foi a palavra mais elogiosa que o treinador rubro-negro escutou. A arquibancada pedia Arrascaeta novamente e o técnico pôs Vitinho. As coisas só pioravam, Abel colocou Lincoln no lugar de Gabigol. Arrascaeta não foi para o jogo. Parecia até birra do treinador.
Resignado sentei para descansar. Já estava pensando em todas as “zoações” que enfrentaria dos alunos e dos meus amigos que não são rubro-negros. Estava de forma egoísta pensando em como me livrar das brincadeiras. Abel era xingado, mas desordenadamente o Flamengo encurralava os paranaenses, de forma parecida como a que fez na semana passada com o Atlético Mineiro. E a monocórdia jogada do Flamengo deu resultado. Everton Ribeiro levantou na área e Bruno Henrique empatou o jogo, aos 45 minutos. Felipe olhou para mim e disse: “ainda dá tempo”. Pensei que a juventude o iludia. O empate já tinha caído do céu. Aos 51 minutos, René, que pouco acertara até então, cruzou na área e Rodrigo Caio, o jogador mais regular do Flamengo no ano, subiu como se tivesse sido jogado para cima com o grito de 52 mil pessoas e acertou um balaço de cabeça. Golaço, daqueles que os velhos torcedores estavam acostumados a ver.
Nesse inacreditável terceiro gol, Estanislau caiu para trás, literalmente. Mas essa não foi a maior baixa. Um rapaz, vestido com a camisa 14 de Arrascaeta, se estatelou no chão. Com muita dificuldade, foram necessários três ou quatro solidários torcedores para ajudar o rapaz. Com o pouco de sobriedade que ele ainda tinha, tirou a camisa e começou a rodá-la como se comemorasse um título mundial.
O juiz apitou o fim da partida. A torcida cantou enlouquecidamente, no entanto, pouco depois, caiu em si e começou a pedir a cabeça de Abel Braga. Os jogadores que ganharam o time reserva do Athletico se sentiram no direito de não saudar os torcedores. A situação no Brasileiro é que o Flamengo fez 10 pontos em 18 disputados, aproveitamento de meio de tabela. O clima entre Abel e a arquibancada azedou de vez, nem a vitória foi capaz de aliviar.
Acabado o jogo, esperamos para sair. Nisso, avistamos novamente o rapaz que uma hora e meia antes tinha perguntado onde era a escada. Ele continuava em pé, mas a expressão era aquela que só tem quem está com alma encharcada de álcool. Com as pernas doendo e olhando o estádio vazio com “restos mortais” do consumo de álcool e comida no chão, pensei: “de fato, estou no Circo Voador”.
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