O bombeiro chorou
A gente faz jornalismo com o que traz dentro da
gente. Se não for assim, fica falso e fica chato. Acho que isso sempre foi o
que mais me fascinou nessa profissão. Há quase 20 anos fiz uma das matérias mais
fortes da minha vida. Era um domingo no mês de novembro, em 1998. Era um
domingo e eu tinha chegado no plantão praticamente virado. Estava de ressaca
também.
No entanto, a gente faz jornalismo com que traz dentro da gente,
inclusive ressacas. Era um domingo abafado, daqueles que você apela para Deus,
Buda ou no que acreditar para que o dia transcorra leve, sem problemas. Naquilo
que meus alunos classificam hoje em dia como "suave".
Estávamos eu o Luiz Andre Ferreira na redação. Lembro-me que ele estava
envolvido com alguma matéria especial e eu correria para qualquer
eventualidade, o que acabou acontecendo
Um sobrado na Rua do Livramento, pertinho da rádio Tupi caíra. Com as
ruas vazias no domingo a chegada ao local foi bem rápida. O relógio marcava
perto das 13h e os termômetros no mês de novembro são inclementes no Rio de Janeiro.
O cenário era devastador. O que era uma casa velha virou um amontoado de pedras desmoronadas. Embaixo dos escombros, quatro
crianças aguardavam socorro. Os bombeiros tentavam retirar as pedras para
salvar os meninos. Ao lado deles, duas mães desesperadas gritavam, esperando as
respostas das crianças. Era uma forma de ajudar na localização embaixo daquela
pilha de destruição.
As ruas internas da Zona Portuária antes do “banho de loja” olímpico eram degradadas, várias casas em condições deploráveis, marquises escoradas
com madeiras e fachadas descascadas davam a ideia que as vésperas do século 21,
o local não saíra do século 19. Havia alguns cortiços, como o que tinha
desabado e deixado as quatro crianças soterradas.
O resgate era demorado e tinha que ser feito cuidadosamente. Cada
movimento para retirada das pedras poderia significar mais um desmoronamento.
Os bombeiros corriam contra o tempo e tinham na fragilidade da estrutura que
restara uma inimiga pronta a encerrar o êxito da operação.
Pouco mais de uma hora depois a primeira criança é retirada. A mãe se
abraça ao menino sujo de terra e chorando muito, os bombeiros levam o menino
dali para o atendimento apropriado. Ela e a outra mão companheira de dor e angústia
não arredavam o pé. O resgate da primeira criança deu mais esperanças às duas.
Logo em seguida os bombeiros ouviram uma segunda criança. A mulher que ainda
estava com os dois filhos embaixo dos escombros identificou a voz como sendo de
um deles. Porém, a vida não é tão "de exatas" assim, a criança
encontrada era o outro filho da primeira mulher. O contraste entre dor e alívio
estava refletido nas expressões daquelas mães. Para uma, o drama
terminara bem...
Os bombeiros intensificavam as tentativas de resgate, três horas... Quatro horas... Do
meio das escavações um bombeiro levanta as mãos e faz um sinal encerrando as
buscas. O que ninguém queria que acontecesse se tornou real. As duas crianças
foram encontradas mortas.
Quase 20 anos após a tragédia, ainda sinto o peso daquela cena. O sol
inclemente, os gritos da mãe, a decepção no olhar de quem conhecia as crianças e as lágrimas incontidas daqueles que acompanhavam o resgate.
A gente faz jornalismo com que traz dentro da gente, mas jornalista tem
que vestir uma capa, tem que se manter firme e dar a notícia. No rádio, por
causa das características do veículo, você tem que fazer a transmissão. Era
isso que eu fazia, no ar o apresentador Marco Aurélio conversava comigo e eu
fazia um relato do que estava acontecendo. Entrei muitas vezes no ar naquele
dia. No rádio a notícia anda, você não espera acabar para entrar. Rádio é
simultâneo e instantâneo.
Só uma coisa saiu do script do manual de redação. A reação dos
bombeiros. Eles choravam enquanto colocavam as crianças de 2 e 4 anos em
pequenos caixões. Esse detalhe me despertou do “transe profissional”.
Experiente, Marco Aurélio percebeu que eu engasguei, assumiu a transmissão e a
produtora Cristina Freitas conversou comigo e me confortou até que eu me recuperasse e retomasse o
flash.
O choro dos bombeiros, bem mais acostumados com essas situações,
funcionou como um balde d´água fria que me acordou. A gente faz jornalismo com
o que traz dentro da gente. Alegria, tristeza, riso e choro fazem parte da
vida.
Tudo isso voltou quando vi os caixões das vítimas da creche em Janaúba.
As crianças tiveram algozes diferentes, no caso que eu reportei/vivi foi o descaso do
poder público em não resolver o problema da habitação, permitindo que aquela
casa continuasse com moradores. Na cidade mineira foi um homem que não nos
deixa esquecer que tem gente que a maldade que traz dentro de si transborda e
atinge a todos. Força e resiliência para as famílias das vítimas dessa tragédia
inexplicável em Minas.
Sei muito bem o sgnficado do que vc escreveu. Parabéns.
ResponderExcluirPalavra de repórter é palavra de repórter. Obrigado Gelcio
Excluir