quinta-feira, 3 de setembro de 2020

Distanciamento social e isolamento acústico


O vento da manhã ensolarada de inverno ameniza o que poderia ser um dia infernal no Rio de Janeiro. A paisagem é um convite à contemplação. No entanto, apesar de estarmos em setembro, a primavera não chegou e nem tudo são flores. 


O silêncio vez em quando era quebrado no que eu inocentemente pretendia  uma manhã de relaxamento. A leitura matinal dos sites informativos deixava a cabeça em tempestade. Mas decidi que nada iria me tirar do eixo. Ledo engano. 


A seis metros de mim, um cidadão começou a conversar sobre seus clientes. Ele  pediu então ao interlocutor que “vá com o pé no peito do Eduardo”. Não fazia ideia de quem seja o Eduardo, mas temi pela integridade moral dele após um pontapé no peito, típico de Bruce Lee. Bem, isso é vintage, hoje em dia a metáfora se aplica ao lutador de MMA Jon Jones. O orador violento interrompeu a conversa, pois teria outro “call”. 


A uns 4 metros, logo dentro de um distanciamento social, uma moça no início de seus 20 anos discutia algumas agruras de seu trabalho. Depois falou de catuaba e roda de violão até altas horas. Terminada esta etapa voltou às atividades e deixou de informar o status de sua vida profissional e social. 


Com os dois sossegados, pensei que minha manhã ficaria tranquila e a brisa pudesse embalar até um fortuito cochilo, tendo o vento como trilha sonora. Ledo engano 2. 


Quando fechei os olhos, o sopro claudicante de uma flauta entoava Anunciação, de Alceu Valença. Uma menina de uns 10 anos treinava a música, com o olhar complacente de dois adultos e o desespero de alguém que gostaria de relaxar. 


Chego à conclusão de  que o distanciamento social deveria vir seguido de um isolamento acústico. A manhã passou, o cochilo acariciado pela brisa leve não aconteceu e a tarde me reservava uma sala de aula virtual, que para minha sorte, eu gosto de estar. E o mau humor que me cercou parecia a rabugice de alguém que está cada vez mais impaciente com o passar do tempo. É, velhice, “tu vens, tu vens, eu já escuto os teus sinais. 

domingo, 7 de junho de 2020

Amadou Diallo, João Pedro, George Floyd...

Há 20 anos 4 policiais brancos de Nova York foram absolvidos após fuzilar com 41 tiros um jovem negro desarmado de 22 anos. Amadou Diallo saiu da Guiné para os EUA com o objetivo de estudar. Ao chegar na America, não conseguiu se estabelecer. Morava no Bronx, um lugar na periferia da cidade mais icônica do mundo. 

Em fevereiro de 1999 chegava em casa quando foi abordado pelos 4 policiais. Ele se ajoelhou e ao pegar a carteira no bolso, os policiais dispararam 41 tiros contra o jovem indefeso.

Os homens faziam parte de uma equipe da polícia nova-iorquina chamada Divisão de Crimes de Rua. Eles andavam à paisana e com carros descaracterizados. A divisão era uma das iniciativas do prefeito Rudolph Giuliani dentro da politica Tolerância Zero, para diminuir os índices de violência na cidade. 

A mãe de Amadou Diallo foi da Guiné para os EUA buscar o corpo do filho e pedir justiça. Foram 11 meses de espera, manifestações , atos de desobediência civil pressionando Giuliani e a policia. 

Os advogados de defesa dos acusados conseguiram o “desaforamento”, que é a transferência para uma jurisdição diferente de onde aconteceu o crime. 

Dizendo que os moradores do Bronx estavam com o julgamento “contaminado” pela pressão da mídia, a justiça tirou o caso de lá, onde 81% da população eram de pessoas negras e mandou para Albany, onde 89% da populacão eram de pessoas brancas. No novo local o júri de 12 pessoas era composto por 8 brancos e 4 negros. 

Após o julgamento os 4 policiais foram absolvidos numa decisão que chocou a comunidade negra americana. 

Passados 20 anos, os americanos tiveram que voltar às ruas para protestar pela morte de um homem negro desarmado com a participação de 4 policiais brancos.

Um jornalista americano que cobriu o caso Diallo foi ouvido na excelente série documentário Condenados Pela Mídia. Ele disse que “Racismo se trata de medo e o medo do homem negro na esquina continua ate hoje”. 

Há incontáveis Amadous pelas esquinas das periferias do mundo. No Brasil temos muitos casos assim, alguns ganham notoriedade, outros entram nas estatísticas como “auto de resistência”. Os mortos têm em sua maioria a mesma etnia. Fingir que isso não acontece estruturalmente é cinismo, maldade, burrice ou tudo junto. 

sexta-feira, 1 de maio de 2020

O abacate e a pressa

Nunca mais, mas nunca mais mesmo, comerei um abacate que não esteja maduro. A última vez que estive por aqui, escrevi antes dos efeitos devastadores que minha insistência em não respeitar a maturação do abacate se manifestarem. 

Quem já comeu peixe passado, sabe do que estou falando. Diríamos que foi a vingança do abacate pela minha teimosia. Revirei do avesso e fiquei na cama o dia inteiro. Pesquisei na internet para saber se um simples abacate fora do tempo era capaz de causar tal estrago. Descobri que abacates verdes podem inclusive matar alguns passarinhos. Diante disso, concluí que tenho estômago de passarinho. 

Eu não conheci a avó do Giovanna Faria, mas ao ler meu texto ele me contou o que a dona Eponina falava: “Nunca tire o abacate do pé. Pegue sempre os que estão no chão”. Mestre Giovanni conta também que depois de fazer o almoço, servir o marido e os filhos, a avó se sentava e ficava olhando para o céu, para o mato. Depois de um tempo de contemplação, ela interrompia o silêncio com uma expressão “cuá” e seguia a  jornada. Giovanni me disse que procurou o significado dessa palavra exaustivamente e nunca encontrou. O fato é que ela marcava o fim do período de contemplação de dona Eponina. 

A verdade é que eu precisava dessa consultoria da velha senhora ao me dirigir ao setor de hortifrutis do supermercado. Isso tudo é sobre respeito ao tempo. Os gregos tinham duas palavras para designá-lo: chronus, que se referia ao tempo sequencial, e kairós, para dar uma natureza qualitativa ao tempo, o chamada momento oportuno. 

Eu não respeitei o kairós do abacate e meu organismo pagou um preço alto. Fiquei pensando em quantas vezes quis interferir no kairós de quem eu amo. Muitas vezes não é por mal, é por ansiedade. A sabedoria mora na espera. Ou no ensinamento da dona Eponina de não pegar o abacate no pé, só aqueles que estiverem no chão.  Bem, tem também o momento de saber dizer “cuá” na hora de parar com o descanso e voltar a agir. 

quarta-feira, 29 de abril de 2020

A pressa e o abacate

O abacate é verde na aparência. Logo, temos que olhar além da cor para saber se o fruto está bom para comer. Além do olhar, tem que usar o tato para avaliar se ele está mole. Eu acrescento ao processo uma sacudida, para ver se a semente está solta. 

Bom, queria tomar uma vitamina de abacate. Olhei para ele e fiz rapidamente o ritual descrito. Apertei o abacate e vi que ele estava começando a ficar mais mole. Sacudi e o “chocalho” estava mais preso. Minha vontade de tomar a vitamina decidiu que era hora de usar o fruto. Calculei a metade e meti a faca. A lâmina  não entrou numa superfície macia e percebi que talvez não fosse o momento de cortar o abacate. No entanto, insisti. 

A semente estava muito entranhada na polpa do abacate. A retirei, mas uma boa parte estava intimamente grudada nela. Liquidificador a postos, peguei a colher para raspar o abacate e colocá-lo no copo do aparelho. Em vez de um fruta tenra, retirei lascas de abacate. 

Naquele momento tive a certeza de que o fruto não estava maduro. Mesmo assim, pensei: “já cheguei até aqui, agora vou terminar”. 

Consumindo o dobro do tempo e do esforço, coloquei a fruta no copo do liquidificador. Adicionei leite e adoçante. Afinal, é impossível o abacate ficar com gosto ruim. Liguei o aparelho e processei minha vitamina. 

Notei que ela não estava cremosa. Ora, não estaria, pois o abacate não havia amadurecido. Mesmo assim, vitamina pronta, sorvi com expectativa boa, pois uma vitamina de abacate é das melhores coisas desse confinamento. No entanto, foi a pior vitamina de abacate que tomei na vida. Além de não estar cremosa, a fruta estava com o gosto mais amargo, pois não havia completado seu ciclo. 

Não era o momento de consumir o abacate e eu insisti. Fiz tudo como sempre faço, mas a matéria prima principal, o abacate, precisava de mais maturação. Por mais que você tente influenciar os processos, as coisas precisam de ciclo temporal. Serve para frutas, serve para os filhos e para toda natureza de relacionamentos que você empreende não vida. Respeite o ciclo das relações, ao querer antecipar algo que não está pronto por pressa ou ansiedade, você pode inutilizar a fruta e ficar com o gosto amargo na boca. 

sábado, 18 de abril de 2020

Qual foi seu baile da Ilha Fiscal?

O baile da Ilha Fiscal foi o último baile do império ocorrido em 9 de novembro de 1889. A festa ocorreu menos de uma semana antes do golpe da Proclamação da República. Alguns eventos, ao longo da história, foram ganhando o apelido de “baile da Ilha Fiscal” por anteceder alguma grande mudança. 

Diante da realidade totalmente nova e não esperada que se descortina, com isolamento e quarentena, fiquei pensando, qual foi meu “Baile da Ilha Fiscal”? Cheguei a conclusão que o meu foi no lançamento do livro sobre o caso Proconsult, escrito por meu querido amigo Mauro SIlveira. O evento ocorreu no dia 9 de Março. A quarentena começou no dia 16. No lançamento houve o congraçamento de várias gerações do jornalismo. Desde Pery Cotta, lúcido e ativo aos 80 anos, até os vários estudantes que ainda estão na faculdade. 

O mundo não será mais o mesmo, talvez seja essa a grande lição da pandemia. O beijo no rosto para cumprimentar, o abraço no amigo e as aglomerações serão vistos como reprováveis até depois que esses loucos e isolados tempos passarem. Nos distanciaremos fisicamente das pessoas. Se o mundo digital já esgarçava as amizades presenciais, o coronavírus as transformou em algo condenável. 

Mas mesmo assim, quem tem dinheiro, sempre arruma um jeito de ganhar mais dinheiro. As lives patrocinadas de artistas podem gerar muita receita para artistas, patrocinadores e para as plataformas que abrigam esses eventos. O trabalho em casa, o tal de “romófici”pode ser o caminho para precarizar de vez as relações trabalhistas. A pandemia vai passar, mas definitivamente,  não seremos mais os mesmos. 

segunda-feira, 16 de março de 2020

Os dinossauros e as nossas culpas

A Globalização do capitalismo foi a panaceia do mundo. Consumir num globo sem fronteiras deu uma ideia de poder nunca vista na civilização. A tecnologia aniquilava distâncias, o que antes demorava meses para chegar à periferia do mundo passou a estar presente simultaneamente em todos os  lugares. O capital e a tecnologia, talvez seja um erro semântico separar os dois, são a face triunfalista da globalização. 

A conta começou a salgar quando além dos bytes e da grana, pessoas passaram a atravessar as fronteiras. Num primeiro momento foi bom. Os estrangeiros ocuparam lugares e prestaram serviços que a população local não queria ou não sabia. No entanto, a partir de um determinado momento, o acúmulo de bens e o “bem estar social” começaram a ser prejudicados por essas pessoas globalizadas. As elites queriam apenas os grandes produtos, ou os “grandes cérebros”, mas a globalização das pessoas não trouxe gente apenas para o topo, gente da base da pirâmide também acreditava que trocar a terra natal era a saída para escapar da miséria. O capital e a tecnologia fizeram sonhar e agora queriam fechar a porta. A globalização das pessoas é a etapa que a elite queria evitar. 

Agora é a globalização da doença. Pandemias não são novidade. No entanto, como milhares de voos ligando o ponto mais remoto da terra às grandes metrópoles, uma doença pode se espalhar com a facilidade do fogo numa fábrica de plástico. O coronavírus mostra isso, o que acontece a dezenas de milhares de quilômetros interessa a todos. Louva-se tanto a aldeia global e agora essas Inter-conexões cobram a conta. A saída é ser solidário. Como? Seguindo as instruções das autoridades quanto a isolamento e higiene. Como vi outro dia, não é corona-férias é corona-isolamento. Nesse momento, acontece ao capitalismo o que a gente sempre ouviu dos mais experientes, “vai com calma, pois se não você fica doente e tem que parar”. O capitalismo ficou doente. As bolsas despencam e a indústria do entretenimento está paralisada. As grandes ligas esportivas do mundo interromperam as temporadas. Bilhões indo pelo ralo e tem gente dizendo que é “histerismo”. O coronavírus é uma freada de arrumação. Tomaremos jeito? Dessa vez é uma doença com taxa de letalidade razoavelmente baixa, mas que atinge aos mais velhos de forma cruel. Então a hora é de recolhimento e de aprendizado. Da próxima vez a doença pode ser mais “democrática” e matar mais gente. Não há mais fronteiras, nem para a tecnologia, nem para o capital, nem pra as doenças. Os dinossauros não tiveram culpa por seu destino, nós teremos. 

quarta-feira, 4 de março de 2020

Sobre o ato de escrever

Primeiro eu engravido. 
Pode ser de um pássaro voando. 
A luz que bate diferente no morro em frente da minha janela também pode ser instrumento desta concepção. 

Depois de engravidar, preciso expelir. Não é uma gravidez confortável. No lugar de ultrassom, a angústia serve como lente para verificar os sinais vitais do rebento. 

A gestação é curta. Não demora mais do que dois dias. Preciso que aquela cria se liberte de meu ventre/intelecto para que haja mais espaços disponíveis. 

Não gosto de pentear o filho recém-parido. Dou rápidas olhadas e peço que alguém me ajude na tarefa de zelar por ele para que se torne adulto. 

Depois de nascido, espero que ele ganhe vida sem mim. Na alma dos outros que vão ler. Não há “re-parto”. Inexoravelmente ele esvanece na sua lembrança. 

Filhos expelidos após uma concepção dolorida tendo como leito conjugal, uma folha em branco física ou digital. 

Vai conjunto de letras, pretensiosas e altivas, na busca de uma vida própria que dure mais do que uma postagem no Facebook. Sai de mim, vai e perturba nobres espíritos. 

Vai filho mestiço, meio prosa, meio poema. Entre a pretensão e o talento, entre o orgulho e a consciência da improbabilidade de chegar a algum lugar. O que vale é a caminhada que eles empreendem depois de cortar o cordão umbilical. 

terça-feira, 3 de março de 2020

Um pouco sobre Amor de Mãe parte 2

Thelma mostra que Adriana Esteves pode tocar vários instrumentos. A personagem começou como uma mulher sofredora, com um aneurisma na cabeça. Ali, Thelma poderia mudar o nome para Helena e estaria em algumas novelas de Manoel Carlos como mocinha. O personagem foi se mostrando como o sol que sai detrás da montanha e quando se vê já tomou conta da praia. 

A dona do restaurante  Tasca do Passeio mostrou que seus limites éticos eram elásticos quando emprestou a farda do marido morto para que o namorado traficante de armas  fugisse da polícia. Acrescenta-se à paleta de cores da personagem uma paixão cega que a faz capaz de qualquer coisa quando ama. 

A relação obsessiva com Danilo estava presente desde o primeiro capítulo, quando ao saber da doença gravíssima se recusou a contar ao filho. Ali estava a pista para a formação de seu arco dramático. Super protetora, capaz de basear a relação com a pessoa que mais amava em uma mentira. Se mentia sobre a morte, poderia mentir sobre o nascimento. E foi assim que se desenhou a possibilidade de que Danilo não fosse seu filho biológico. Para tais sutilezas do texto, a autora precisava de uma atriz que pudesse dar o tom certo a uma personagem tão difícil. 

Adriana Estevez tem em sia carreira personagens sedutoras. Foi Marina, uma mocinha clássica em Pedra sobre Pedra. Marcou sua história na TV com uma vilã de manual com a Carminha de Avenida Brasil. E Laureta foi uma vilã em O Segundo Sol com o registro muito próximo ao de Carminha e por isso, não será tão lembrada. Mas Thelma não tem na sensualidade a arma de sedução. Ela é recatada. Roupas sóbrias, saias abaixo do joelho, pouca maquiagem. Se Carminha e Laureta eram espalhafatosas, Thelma é simples. Quer agir nas sombras. Por isso, fura as camisinhas para que o filho engravide a namorada. Escondeu a doença e escondeu a adoção, o verbo de Thelma é dissimular, não é seduzir. 

Talvez por isso o romance com Nuno não tenha ido para a frente e o idílio com Durval pareça uma comédia de erros. Durval foi a pessoa com quem Thelma foi mais honesta em toda a trama. E se relacionar com alguém em que os laços  não começaram na sombra seja difícil para a trajetória de Thelma. 

Agora se desenha a virada narrativa de Thelma. Ela cometerá crimes, mentirá mais do que nunca para não perder seu filho. A história de Thelma é trágica. Sua sentença foi anunciada no primeiro capítulo de Amor de Mãe. No entanto durante o percurso da personagem, Adriana Esteves mostra muitas faces de seu repertório. Thelma é um daqueles personagens inesperados, um caminho cheio de esquinas, em que a surpresa e a falta de limites estão à espreita. 

domingo, 1 de março de 2020

Um pouco sobre Amor de Mãe parte 1

De Avenida Brasil para cá a novela que mais me agradou foi Amor de Mãe. No meio teve a excelente Força do Querer e a artística Velho Chico. Estamos acompanhando no horário nobre uma novela que artisticamente tem muito a acrescentar a um produto que tem mais de 60 anos só no Brasil. 

A primeira cena em que Lurdes/Regina Casé está numa entrevista de emprego e faz um resumo de sua história olhando para a câmera já mostrava que a obra procuraria uma associação com o cinema. 

O primeiro capítulo não foi um mero videoclipe. Tudo que se prenunciava seria fundamental para o restante da obra. O roubo de Domenico, o assassinato de Genilson estava tudo ali. A novela já começou “pegando no breu”. 

Por falar em cinema, há muitas cenas em plano-sequência, além de tomadas externas que oxigenam e quebram as “paredes projaquianas”.  Em um capítulo, Thelma/Adriana Esteves conversava animada com Durval/ Enrique Diaz na Mureta da Urca. Há momentos em que Amor de Mãe é um poema visual. 

A trilha sonora é um primor. Quando recordava o amor do passado com Vitoria/ Tais Araujo, Raul/Murilo Benício tinha como trilha sonora a belíssima canção Mistérios, de Joyce Moreno. Em alguns momentos, para embalar uma cena terna ouve-se Acabou o Chorare, dos Novos Baianos. 

A trama de Manuela Dias me conquistou como há muito não acontecia. Regina Casé está irrepreensível. Que atriz! Faz rir e chorar. Adriana Esteves mais uma vez brilha num papel neurótico, obsessivo que agora vai descambar para a psicopatia. Taís Araújo se mostra um atriz amadurecida, mesmo sendo no trio de protagonistas a que tem a trama menos impactante. 

É preciso ter uma coisa em mente. A novela é o principal produto da indústria cultural brasileira. Há tramas muito frouxas, que estão ali para preencher escaninhos comerciais. A ascensão de Rian/Thiago Martins serve para ações de merchandising, por exemplo. Já, os excelentes Milhem Cortaz é Débora Lamm se equilibram para dar conta de um núcleo cômico obrigatório em qualquer história das 21h. Essa obrigação comercial faz com que algumas partes sejam deixadas de lado. Nos últimos tempos o engajamento da professora Camila/Jessica Ellen com a escola ficou congelada. Óbvio que deveria haver cuidado para não transformar o núcleo num spin-off de Malhação, ma, por exemplo,  o drama de Loyane/Dora Freind uma adolescente que se esforça para estudar mesmo depois de se tornar mãe deveria ter mais destaque, é assunto muito comum na sociedade brasileira. 

Quase comento a injustiça de não citar o Álvaro encarnado por Irandhir Santos que rouba quase todas as cenas em que está.  O ator ainda conseguiu junto com Estela/Letícia Lima transformar sua careca em um objeto fálico. 

Mesmo com o Rosário de qualidades desfiado ao longo deste texto, Amor de Mãe claudica na audiência. Assusta-me que tramas artisticamente mais fracas como as de A Dona do Pedaço e do Outro Lado da Vida sejam sucesso de público. 

Mas se você é do time das séries dos serviços de streaming dê uma chance à Amor de Mãe, produto audiovisual de primeira. 

Rio, eu te amo

Hoje o Rio completa 455 anos. E todo dia primeiro de março gosto de lembrar do ano de 1991. Eu ainda não tinha feito 20 anos e apareceu a oportunidade de assistir a ninguém menos do que Tom Jobim. 

O show foi na praia do Arpoador, um presente para o Rio e para os cariocas, numa época em que o prefeito se chamava Marcello, mas gostava do Rio. 

Bem, foi um show histórico e lotado. Na hora em que o maestro apresentava uma de suas obras mais icônicas “samba do Avião” se deu um daqueles momentos que unem vida e poesia. Quando cantava o verso “dentro de mais um minuto estaremos no Galeão” passou acima de nós um avião de carreira em direção aos aeroportos. 

O público foi ao delírio com efeito especial improvisado. Não sei se a aeronave pousou no Santos Dumont ou no Internacional, o que importa é que foi inesquecível para mim e para todos que ficaram com os pés sujos de areia e a alma cheia de sonhos e sons. 

Foi há 29 anos. Hoje em dia me arrepio com a possibilidade de ficar horas em pé sem poder descansar as pernas e as costas em eventos semelhantes. Ah, continuo não gostando de voar, mas de lá para cá, até subir em helicóptero para trabalhar já tive que fazer. 

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020

Os óculos de Marina Colasanti

Seria uma tarde de trabalho como outra qualquer. Apresentei-me à entrevistada, sentei ao lado do outro participante e começaria a gravar um podcast. 

Mesmo com mais de 20 anos de profissão, alguns interlocutores ainda me provocam certa ansiedade. A pessoa que estava na minha frente era uma dessas. 

Fiz questão de não disfarçar o nervosismo. Tem um ponto da vida que a gente enxerga que a honestidade é o único caminho. Fui logo dizendo à escritora Marina Colasanti que perdoasse qualquer deslize provocado por algum resquício de deslumbramento que viesse a contaminar minha entrevista. 

“Marina, é uma grande honra conhecê-la e poder lhe entrevistar”. Ela não perdeu o bom humor: “preferia que você dissesse que é um prazer, quando dizem que é uma honra, fico preocupada, pois parece que estão dizendo ‘foi uma honra lhe conhecer enquanto você está por aqui’, então sempre prefiro que seja um prazer”. Rimos todos, ela, o editor Pedro Vasquez e eu. 

Peguei meus apontamentos no caderno e me deparei com a dura realidade. Esquecera os óculos. Meus hieróglifos somados com a hipermetropia deixavam meus alfarrábios indecifráveis. Generosa, Marina se apressou: “use os meus”. 

Num primeiro momento, rejeitei polidamente. A razão era a seguinte: o diâmetro efetivo de meu crânio é avantajado. Estava com medo de alargar os óculos dela. Mas a escritora insistiu: “Não tem problema, meus óculos são flexíveis”. 

Eu aceitei. Coloquei os óculos de Marina Colasanti e repentinamente, as letras que pareciam um mistério gráfico se descortinaram. Eu pude entender tudo, parecia que uma luz especial havia se apoderado de minha retina.  Os óculos tinham o aro fino e lentes retangulares. Nela, um apetrecho anatomicamente perfeito, em mim, um improviso ótico. Se em termos estéticos não seriam apropriados, em sua funcionalidade, foram perfeitos para mim. 

Durante os pouco mais de 30 minutos em que usei os óculos de Marina Colasanti, pude enxergar as folhas de papel pela ótica dela. Seus óculos são realmente flexíveis. 

Não pude encarnar-lhe a alma apenas com os óculos emprestados. Talvez isso pudesse facilitar muitas das minhas angústias quando olho uma folha em branco. Saberia resolver melhor os entraves que a tentativa de expressar os sentimentos me impõe. 

Ao final da entrevista deixamos o estúdio juntos e acompanhei até a portaria do prédio. Na tarde abafada de verão em Ipanema, ao me despedir, não cometi o erro novamente: “Marina, foi uma grande prazer lhe conhecer”.  Mas cá entre nós, foi uma honra também. 

domingo, 2 de fevereiro de 2020

Trazer para perto as pessoas que se ama

As pessoas chegam a conclusão que envelheceram de diversas formas. Assistindo à decisão da Copa São Paulo de Juniores me deparei com um juiz de 24 anos, ou seja, um árbitro de futebol que tem a metade da minha idade. A ficha já tinha caído um pouco quando a série A do Brasileirão foi disputada com vários treinadores mais novos do que eu. 

Há pouco tempo me deparei com outra coisa cruel da passagem do tempo. Se eu desempenhasse o ofício de ator já não faria papel de jovem na primeira fase de uma novela. Pois é, os atores mais velhos das fases atuais das novelas são da minha idade, ou mais novos. Em Amor de Mãe, Murilo Benício é dois anos mais novo do que eu. Taís Araújo, mais nova do que eu, aliás, da Tais fui até professor. Vladimir Brichita, mais novo. Só Adriana Esteves é mais velha. 

Isso não parece fazer diferença, mas de repente você percebe que já não é o caçulinha, ou como se chamava na minha época “café-com-leite”. 

Agora eu sou o “tio” que recebe os amigos dos filhos em casa, o cara que tenta se enturmar, mas cuja presença constrange e tira a espontaneidade das conversas. O pai que dá aquela envergonhada básica nos rebentos por tentar se “da galera”. 

Perceber a passagem do tempo é fundamental para que o tempo continue passando. Por exemplo, amo futebol. As peladas de fim de semana faziam parte da minha “rotina religiosa”. Hoje, se chuto uma bola uma mísera vez o joelho dói por 15 dias. Não vou falar dos riscos cardíacos inerentes à teimosia de bater uma bolinha. 

E nessa passagem do tempo, a gente não percebe como se afasta dos amigos. Uma das minhas resoluções de ano novo, ainda estamos em fevereiro, o ano ainda é novo, é trazer para perto as pessoas que amo. 

Pegar o telefone e ligar para os amigos que não vejo há muito tempo para conversar, tomar um chopp, relembrar velhas histórias, reviver micos e saudades. Fazer com que o convívio espante a melancolia que a passagem do tempo e a ausência provocam. 

Um amigo me disse que “a gente vive desmarcando os encontros por falta de agenda, mas depois aperta tudo para poder ir aos enterros. Por que a gente não se encontra agora”? A resposta é que a rotina nos massacra e a gente acaba por inércia e preguiça escolhendo os caminhos mais fáceis. 

Quando viramos pais, os pais dos amigos dos nossos filhos se tornam nossos amigos. Mas agora, quando os filhos estão crescendo e as “festinhas” desaparecem temos que conviver com as pontes que construímos ao longo da vida. 

Então vamos nos ver mais, contar as velhas histórias, para revivê-las. Vamos sair da inércia. O tempo pode ser amigo, se a gente fizer isso com ele. Mas a sua crueldade reside no fato de que ele é inexorável e imutável. 

segunda-feira, 20 de janeiro de 2020

Vaias e divergências

Esbarrei sem querer no vídeo em que o cantor Sérgio Ricardo é impedido de cantar pela plateia no Festival da Record de 1967. Se você ainda não sabe, a história é essa: Sérgio Ricardo classificou a música Beto Bom de Bola para a finalíssima do festival. No entanto, o público implicou com a canção sobre um jogador que começara humilde, virou um Deus dos estádios e acabou na rua da amargura. 

Sérgio Ricardo teve a sensibilidade para falar do drama de vários jogadores, mas se não foi diretamente para Garrincha, foi ao menos profético em suas palavras ao que acabou acontecendo com o “Anjo das pernas tortas”. 

No entanto, o público o vaiou desde o anúncio. Sérgio tentou cantar, pediu calma, brincou dizendo que a música poderia se chamar depois daquilo Beto Bom de Vaia. Depois de cantar a primeira parte, o sambinha de Sérgio Ricardo foi abafado pelos apupos do público. O cantor parou, gritou para a plateia “vocês venceram”, quebrou o violão na caixa de som e jogou na público. 

O apresentador Blota Jr entrou no palco pedindo desculpas à plateia pelo “destempero” de Sérgio Ricardo. O diretor da Record ,Paulo Machado de Carvalho, desclassificou o cantor do festival e disse que o artista deveria respeitar o público. 

Passados mais de 50 anos, acho que nunca se pediu desculpas a Sérgio Ricardo pela selvageria cometida contra ele, uma plateia vaiando terrivelmente uma canção. Ok, Beto bom de bola estava longe de ser uma das melhores daquele festival. Algumas das canções daquela edição viraram clássicos brasileiros. Alegria, Alegria, Domingo no Parque, Ponteio e Roda Viva foram apresentadas naquele ano. 

Há outras injustas vaias na história dos festivais. Em 1966 Nana Caymmi já havia tomado vaias ao vencer o festival internacional  da canção , da Globo com Saveiros. Em 1968, a plateia conseguiu vaiar Caetano Veloso na Record e Chico Buarque e Tom Jobim, na Globo. É proibido proibir e Sabiá entraram para história mais por sua excelência artística e não pela incivilidade com que foram recebidas nos festivais. Em 1981, também na emissora carioca,  a voz límpida de Lucinha Lins foi abafada pelo público quando a cantora venceu o festival com Purpurina. 

Tentar calar quem pensa diferente é mal que existe há muito tempo na sociedade. Definitivamente não é um privilégio destes nossos loucos tempos. A verdade é que os tempos sempre foram loucos neste sentido. 

O terrível é pensar na quantidade de coisas que perdemos ao querer enxergar o mundo com poucas cores, queremos “ou”, e nem aventamos a possibilidade do “e/ou”. Sérgio Ricardo sobreviveu ao extremismo da plateia, louca para colocar o polegar para baixo e matar o adversário encurralado na arena. 

Acho que devemos desculpas a Sérgio Ricardo, Caetano Veloso, Chico Buarque, Tom Jobim, Nana Caymmi e Lucinha Lins. No caso de Sérgio Ricardo, a profecia de Beto bom de bola se realizou em 20 de janeiro de 1983, dia em que Mané Garrincha nos deixou. 

terça-feira, 7 de janeiro de 2020

Tarde quente no Rio

A vida é curiosa e é necessário ter um olhar atento aos pequenos fatos. As coincidências são misteriosas. Às 15h40m dois carros do Corpo de Bombeiros passaram com as sirenes ligadas aumentando a poluição sonora (se isso é possível) na Avenida Almirante Barroso. Ao mesmo tempo que essa cena banal de uma grande cidade acontecia, dois homens passavam na calçada no sentido contrário carregando extintores de incêndio, calmamente. 

Em tudo eram diferentes. Eram dois bípedes, caminhando calmamente com os extintores. A incomodar-lhes somente o sol inclemente do Rio de Janeiro no árido ambiente formado pelos prédios do Centro do Rio. Os bombeiros, a bordo de veículos motorizados, tinham a urgência de quem precisa chegar para debelar o incêndio. Os dois homens tinham a calma de quem carregava extintores que se tudo estiver certo jamais serão usados. 

O interessante é a intercessão que mora no incêndio em relação ao ocorrido. Um como fato concreto que precisa ser resolvido, outro como ideia possível, porém distante, intangível. 

Na verdade, dos diversos tipos de pessoa da fauna humana, dois se destacam aqui. Aqueles que precisam apagar incêndios e agem com urgência e aqueles que atuam na prevenção. Quando fogo surge, foi porque a galera da prevenção deu aquela vacilada. 

segunda-feira, 6 de janeiro de 2020

As andorinhas e a natação

Vi andorinhas no céu do Humaitá. Elas tentavam voar em arco, mas o vento parecia impedir a precisão da figura. O voo das andorinhas parecia mais uma cobra sinuosa voando no céu. 

Cobras sinuosas voando, parecem metáfora de quem usou substâncias ilícitas numa tarde de verão. Não me droguei, apenas resolvi recorrer a figuras de linguagem que pudessem descrever o momento único capturado pela minha janela

Tentei reencontrar as andorinhas, mas só consegui me deparar com helicópteros. Menos poéticos, mais eficazes. Se bem que andorinhas (no plural) fazem verão, helicópteros fazem barulho. 

Decidi que esse texto seria como uma canção de Djavan, sujeito a várias interpretações. Outro dia brincava com meus filhos sobre o que poderia significar a letra de Sina. 

O mais próximo que consigo imaginar é uma aventura no motel no momento do orgasmo. “A luz de um grande prazer é irremediável neon, quando o grito do prazer açoitar o ar réveillon”. Mas não garanto que seja isso, nem consultei o Google para saber. 

 Voltando às andorinhas, enquanto escrevia me deparei com uma delas perdida, voando em direção contrária. Não sei falar “andorinês” e avisar que as outras estavam indo em direção ao Morro Dois Irmãos. 

Depois pensei que nada me garante que a Andorinha faça parte do mesmo grupo. Aliás, existem vários coletivos para pássaros: bando, revoada, passarinhada, passarada, passaredo. Vai depender da escolha poética do freguês. Por exemplo, um rouxinol deve ser um passaredo, pomposo. Urubu é bando, apesar da nobreza nas arquibancadas. Pintassilgo, certamente é passaredo, papagaio, pela zona que faz, sem glamour, forma uma passarinhada. Um grupo de garças  eu descreveria como um passaredo, elegante e imponente. Bem esse parágrafo pode ser interativo. Escolha o pássaro e encaixe no coletivo de sua preferência. 

A gente vê o pássaro e pensa em liberdade, mas não lembra que ele tem que se proteger dos pássaros maiores, que são seus predadores e das balas de chumbinho dos que atiram pelo prazer de matar e testar a pontaria. 

Escrevi, contemplei e nesse tempo as andorinhas não voltaram e enquanto eu esperava por elas, o tempo fechou, começou a chover e eu meus planos de nadar no fim da tarde foram literalmente por água a baixo. Mas pelo menos tinha esse arco-íris da foto.