domingo, 25 de agosto de 2019

Kafka e meus filhos na manhã de domingo




Manhã de domingo com céu meio barro, meio tijolo.  O termômetro em frente à minha casa marca 21 graus. Não há necessidade dos casacos tão grossos quanto os que vejo da janela. Certamente, há lugares no mundo em que essa temperatura convida a uma caminhada usando regata e bermuda. Mas por aqui é pretexto para usar as roupas de frio. 

Dia de colocar a louça de sábado em ordem. E me lembrar que há um mês a assistência técnica da máquina de lavar louça está me devendo uma peça ínfima, sem a qual ela não passa de um inútil trambolho a tomar espaço na cozinha. Outro dia foi o microondas que deu problemas. Parece que enfrento uma “revolta dos eletrodomésticos” cansados de trabalhar e começando a fazer paralisações preventivas. E olha que nem fizeram reforma na previdência da linha branca. 

Enquanto tirava das profundezas da pia um prato para lavá-lo e colocar na ordem certa no escorredor (Sim, eu lavo os pratos por ordem de tamanho. Os maiores  ficam atrás) minha filha de 13 anos me pediu para ouvir a resenha sobre o livro Metamorfose, de Franz Kafka, que ela preparava para a escola. 

Meu filho de 16 anos entrou na cozinha e também ouviu. Pausei o Spotify, já que seria impossível discutir Kafka ao mesmo tempo que ouvia o álbum Gal Costa, de 1969. Não interrompi a lavagem da louça, pois queria me livrar logo daquela pilha de pratos, copos e panelas. 

Ela fez um bom resumo da história, mas alertei que deveria haver um contexto sobre a obra do autor e da época que ele escrevera o livro. Meu filho, que já havia lido há algum tempo, contou-nos que Kafka fora uma criança isolada e reprimida pelo pai. Daí, não é preciso um diploma de psicologia para pensar que um inseto confinado em um quarto, rejeitado pela família tem traços biográficos do autor. 

Mas a resenha dominical em pé na cozinha me fez pensar em duas coisas. A primeira é, quantas vezes permitimos que nossos filhos fiquem trancados em seus quartos, com os olhos no celular, conversando virtualmente. Quantas mensagens por WhatsApp já enviamos para eles, quando estavam a 10 passos de nós, trocando a palavra sonora por emojis, figurinhas e frases curtas com palavras abreviadas. E nisso há o nosso quinhão, quantas vezes nos isolamos também, e estando todos em um mesmo espaço físico, abandonamos quem está do nosso lado para navegar por um mundo digital, sem cheiros, sem suor, sem temperatura, só com sons e imagens. 

A segunda questão é a carga de conhecimento que esses adolescentes recebem. Acho que me toquei sobre quem era Kafka por causa de uma música do extinto grupo Inimigos do Rei. A banda liderada por Paulinho Moska cantava Uma  Barata Chamada Kafka. Os mais velhos vão lembrar de “La cucaracha, tome cuidado com a sandalha de borracha “. 

Eu sempre brinquei que o primeiro conflito de gerações se dá pela velocidade da fala dos filhos, os pai, literalmente, não entendem o que os jovens dizem. No entanto, o conflito maior me parece ser o fato de que eles têm muito mais informações do que nós, mas como estão em fase de amadurecimento, podem se angustiar pelo excesso dessa informação. Isso me lembra do conto Funes, o Memorioso, do gênio Jorge Luis Borges, sobre um homem que tinha a doença de nada esquecer. 

E estamos criando uma geração com muitos Funes, com uma capacidade de absorção gigantesca, una oferta de informação praticamente infinita e uma  dificuldade absurda de escolher. O que num grau mais frequente do que gostaríamos de admitir leva à apatia ou à depressão. Temos que evitar o exílio de nossos filhos nos quartos, com a alma presa em uma tela com luzes e bytes, na qual o calor humano é trocado pela temperatura elevada de um equipamento eletrônico com excesso de uso. 

quarta-feira, 21 de agosto de 2019

Os socos no ar e o sequestro

A imagem do pai de uma refém consolando a mãe do sequestrador da Ponte me deu alguma esperança que este caso traga algo positivo. De diferentes maneiras,TODAS as pessoas dentro do ônibus foram vítimas. 

Os 37 reféns são as mais óbvias e visíveis. Saíram de casa para trabalhar, estavam num horário que quem encara sabe da dificuldade. Acordar de noite, caminhar por vias escuras até o ponto e pegar a condução. Diariamente, a batalha acontece. 

Ainda com sono, ao alvorecer, um homem subverte a rotina e anuncia um sequestro no ônibus. Medo, tensão, incerteza se a vida vai continuar depois do episódio. Os reféns entram nesses casos como as piores das vítimas. Foram surpreendidos e quando percebem são atores involuntários de uma cena trágica. 

Mas e o sequestrador? A leitura rápida e fácil é a de se tratar de um perverso vilão. No maniqueísmo nosso de cada dia, não há diferentes texturas na personalidade. Amarelo é bom, vermelho é mau e laranja não existe. 

William Augusto da Silva tinha 20 anos. Havia saído recentemente da adolescência. Era pobre, negro e morador de uma área periférica da Região Metropolitana do Rio. Entrou no ônibus com uma arma de brinquedo, uma faca e uma arma de choque. 

O rapaz sofria de depressão. No entanto, os pais provavelmente preocupados em colocar comida na mesa, não conseguiram dar atenção quando o jovem teve um surto psicótico no começo do ano e começou a ouvir “uma voz”. 

Um dos únicos luxos de William deve ter sido o celular, porta de entrada no céu do consumo e das informações   Porta de entrada no inferno das teorias conspiratórias, exemplos de publicidade sobre o que não terá e divulgação de atos violentos. As mensagens recebidas serão entendidas a partir dos mediações que somos capazes de fazer. 

Em William, com a depressão a contaminar a alma , as mensagens foram ingredientes para um coquetel megalômano e trágico. Durante o sequestro, ele dizia que iria fazer história, que pararia a cidade e coisas assim. Ninguém escolhe ter depressão e essa doença determina a forma de agir. 

Alguns ficam aprisionados em casa, como se estivessem acorrentados ao pé do sofá. Outros se matam. A de William se manifestou de uma forma que quase ocasiona a morte de 37 pessoas e, que  ao fim e ao cabo, levou sua própria vida. 

O pai de uma refém, que poderia estar com a alma ainda mais adoecida de ver a filha vítima inocente do ato de William, teve a empatia de consolar a mãe do quase algoz de alguém tão querido. A polícia agiu para que os inocentes, envolvidos passivamente no surto psicótico de Willian saíssem vivos. 

Daí a sair dando socos no ar, como lamentavelmente fez o governador Wilson Witzel, ou esbravejar nas redes sociais que bandido bom é bandido morto vai uma diferença do tamanho que tem o poder de um governante e a condição de fragilidade social de pessoas como Willian. 

Depressão mata e precisa ser olhada sem preconceitos. Uma política pública de saúde séria e a acessível poderia evitar que jovens como Willian chegassem a tal estágio de gravidade no quadro. Com informações de que alguns traços de comportamento são sintomas da doença, país poderiam intervir antes de ver pela TV o filho ser morto. 

Dentro do ônibus, eram todos vítimas. Fora do veículo, continuaremos sendo se não for tirado do episódio o aprendizado. Obrigado Paulo Cesar Leal por seu gesto, por entender que  havia dor de todos os lados. Por saber que não há nada a ser comemorado. 

sexta-feira, 9 de agosto de 2019

Quem diz não ter lado, já escolheu um deles

Estou sem escrever no blog há algum tempo. O motivo é que estou correndo na tentativa de cumprir o prazo pra entregar minha dissertação de mestrado. Outro dia vi uma reportagem em que a Heloisa Buarque de Holanda afirmava que  tinha escrito 3 livros em 6 meses. Confesso que me senti intelectualmente humilhado. Outra confissão: tive inveja. Sabe Deus o que tenho passado para escrever minha modesta dissertação em times new roman 12, com espaçamento 1,5. 

Um dos livros que tenho lido é Descobrindo a Notícia, do americano Michael Schudson. Sim, escrevi “tenho lido” em vez de “li”. Enquanto se produz uma dissertação, os livros são lidos continuamente, não é como quando você se entrega a uma obra pelo prazer da leitura. Digamos que é uma atividade em fluxo contínuo. 

O livro de Schudson pretende contar uma história social do jornalismo norte-americano.  Lá pela página 160, o autor começa explicar os embates entre a objetividade e a subjetividade jornalística. Na década de 1960, o então novo jornalismo americano começou a questionar a pretensa objetividade jornalística. Estes novos profissionais afirmavam que a objetividade é utópica e que ao querer ser objetivo, você já está tomando um lado. 

O atual inquilino do Planalto voltou a mostrar as garras. Elogiou um criminoso e quis chamá-lo de herói nacional. Na verdade, o herói dele cometeu crimes contra a humanidade, deveria ter sido preso. Morreu antes de pagar pelas barbaridades cometidas . Os parentes das vítimas de sua sanha desumana só podem esperar que haja justiça divina, pois a dos homens foi morosa ou leniente. 

A respeito de ter elegido um ser ignominio para o lugar mais importante do país, usei as redes sociais para expressar minha opinião. Disse que os “isentões” são os culpados pela vitória deste ser. Fui rebatido por algumas pessoas queridas que disseram que não votaram a favor dele, votaram contra o PT.  Outos me disseram que votaram nulo pois achavam tudo a mesma coisa. 

Então volto a Schudson. O que se colocou no segundo do turno foram 4 opções. Votar no candidato do PT, votar no homem que elogia um criminoso desumano, votar em branco ou não ir. Não votar no candidato petista, era tomar uma posição. As três últimas davam na mesma. Então, achar que não se está tomando posição já é tomar posição. 

Eu discutia isso outro dia. O Brasil é 1/3 para um lado, 1/3 para o outro é 1/3 que flutua. Este terço foi para o lado obscuro em 2018. Em 2014 ele estava praticamente dividido.  Não se vence sem o terço que flutua. 

Então, você que seguiu algum dos três caminhos que não fosse votar no candidato petista no segundo turno, você é responsável quando ameaça-se a Amazônia com autorização de garimpo, se vier a  perder a multa de 40% nas demissões sem justa causa, quando se caracterizar o nepotismo de colocar o filho brincando de embaixador nos EUA, quando a pesquisa acadêmica morrer, ou ainda quando crimes contra a humanidade são exaltados. 

“Ah, mas tiranos o PT”. Perdão, mas acho que você não entendeu o caminho que se apresentava. Você não entendeu que “dentro do porta-luva tem a luva, tem a luva, que alguém de unhas negras e tão afiadas esqueceu de pôr”, como cantou Gilberto Gil. 

A última declaração mostra as unhas afiadas de quem é perverso. Alguém eleito para governar que fala uma atrocidade atrás da outra. Que detesta a verdade, que no mais alto cargo da república é medíocre e mesquinho. Faz política para os parentes, tem relação com as milícias, não respeita a democracia e já virou piada internacional. E você, isentão, essa culpa é muito sua. O problema é que a sua decisão pode ter jogado o país no abismo. A economia não cresce, o desemprego permanece, a política não se modificou e ainda temos que ser humilhados com a tentativa cruel de reescrever o passado matando novamente os mortos e exaltando a assassinos. 

E nesse túnel do tempo, 1964 é aqui e agora. Tomara que a noite só demore 4 anos, e não 21.