sábado, 31 de março de 2018

Revisitar velhas histórias

O ofício de escrever todos os dias, a que me propus seis meses atrás, reserva um desafio: encontrar assunto todos os dias. Toda vez que saio de casa, assisto TV ou leio um livro procuro um mote para o próximo texto. 

O de hoje veio de uma conversa com meu sogro. A frase que me chamou atenção é: “velho tem sempre uma história para contar, que não sabe se já contou”. 

Todos nós temos histórias que gostamos de repetir. Afinal, essas histórias vividas nos conduziram até onde estamos. O olhar para o passado tem algumas utilidades. Uma delas, não repetir os erros. Mas será que são sempre as mesmas histórias?

Este olhar pelo retrovisor é uma construção, na verdade, uma reconstituição. E essa reconstituição não pode ser fiel. Tem que ser na medida que caiba no coração da gente, ou nos limites do retrovisor.  

O esquecimento não é apenas falta de memória no “HD”. É também obra da preservação para continuarmos a caminhada. Tem um conto de Jorge Luiz Borges chamado Funes, o Memorioso. Para não dar spoillers, a doença do personagens é se lembrar de tudo. 

Se a gente se lembrasse de tudo, na verdade, não conseguiria lembrar de nada especialmente. Por um simples motivo: não faríamos escolhas. Jogaríamos na vala comum o gosto da pipoca do cinema e aquele jantar num restaurante delicioso com alguém especial. 

Sem a capacidade de lembrar o que importa, nada importaria. Nessas voltas ao passado, pessoas que viveram as situações com você, muitas vezes sentiram algo oposto ao que você sentiu. É muito difícil conciliar expectativas e lembranças. Há um episódio de Friends em que o personagem Ross reclama que Rachel não fica com nenhum presente que ele dá. Ela troca todos. Na sequência Rachel corre até o quarto e mostra um relicário de pequenos presentes que ela guardara. Um guardanapo com um recado carinhoso, uma camiseta velha e surrada dele que ela usava para dormir, entre outras coisas. Os presentes que importavam para Ross não eram os mesmos que importavam para Rachel. 

As lembranças e sentimentos  são individuais. Cada um vive a história de um jeito único. Mesmo de mãos dadas com seu filho, aquele mergulho no mar é uma experiência individual. Ele terá um ponto de vista que não é o seu. 

O exercício de se colocar no lugar do outro é possível pela empatia, mas jamais se tornará real. É uma utopia. Apesar de respeitar muito a sabedoria de quem está há mais tempo no caminho, tomo a liberdade de discordar levemente do meu sogro. 

Não é apenas o velho que tem uma história pra contar e não sabe se já contou. Todos nós somos assim. Porque no campo da afetividade, onde residem estas histórias, não há tempo continuo. Além disso, quando revisitamos a história há um detalhe novo que foi esquecido..Logo, não há sempre a mesma história. A história é sempre diferente.

sexta-feira, 30 de março de 2018

Como se livrar da fitinha velha de Nosso Senhor do Bonfim?


Tem mais de um mês que voltei da Bahia. Tem mais de um mês que uma fitinha de “Nosso Senhor do Bonfim” jaz no meu pulso esquerdo. 

Não sei de que material elas são feitas. Com certeza não é uma fitinha de um pano comum. A minha é amarela. Vejo-a definhar todos os dias. Esgarça e a inscrição nela já é apenas uma simples lembrança. Mas ela continua intrépida no meu braço. 

Meu pulso é um pouco grosso e o vendedor que me forneceu a indumentária não conseguiu dar duas voltas para amarrar. Resultado: há um rabicho na minha fitinha de “Nosso Senhor do Bonfim”. 

Esperando algo de útil destas mal traçadas linhas (observação: com computador não há nada de mal traçado na forma das linhas)  você deve estar pensando: por qual motivo ele reclama disso? A questão, caro leitor, é que existem alguns inconvenientes. Vou citar apenas um: se estou lavando louça o rabicho da fitinha participa do enxaguar. Tenho que me lembrar, para impedir que a fitinha fique nojenta.

A fitinha mal amarrada fez com que eu desenvolvesse um novo TOC. Pego a ponta do rabicho e fico rodando os restos mortais da fitinha no meu braço. Outro dia na aula um aluno me flagrou fazendo o gesto. 

Ele me aconselhou a cortar a fitinha. Mas aí entrou em cena outro TOC, na verdade está mais para crendice. Reza a mandinga que tem que esperar a fita arrebentar sozinha para o pedido se realizar. 

Ok, sei que sou um professor universitário, tenho pretensões à racionalidade, porém estou refém desta crendice. Não consigo me libertar da minha fitinha de “Nosso Senhor do Bonfim”. No creo en brujas...

O fato é que não sei o que fazer com este ornamento em meu braço esquerdo. Chego a pensar que ele jamais arrebentará. Não vou cortar, afinal, enquanto a fitinha estiver por aqui renovam-se as esperanças que meus pedidos se realizem. Por via das dúvidas, se alguém souber de um caso que a fitinha funcionou, já seria um grande adianto para mim. Pois livre desta dúvida, poderia resolver se corto ou não a fitinha de “Nosso Senhor do Bonfim”.  

quinta-feira, 29 de março de 2018

A queda de Carpegiani

Carpegiani já havia caído na prática. A desarrumada que deu na equipe abdicando dos três meias e colocando Arão ao lado de Jonas foi parecida com a confusão que Zé Ricardo fez na partida contra o Vitória que selou seu destino no Fla no Brasileirão do ano passado. 

Num determinado momento do primeiro tempo do jogo contra o Botafogo, Paquetá e Vinicius Jr trocaram de lado. Na hora pensei que o técnico havia se rendido ao fato de Vinicius preferir jogar pela esquerda. Instantes depois a informação: o técnico ficara furioso com os atletas, porque a troca de posição foi à revelia dele. 

Para o líder, a pior coisa que pode acontecer é perder a confiança do grupo. Mudanças constantes de escalação e de esquemas fazem com que os jogadores não sintam firmeza no comando. 

Carpegiani fez apostas erradas. Cuellar não pode ser reserva de Jonas, Éverton é o jogador mais regular e efetivo do time, Colocá-lo lo na lateral esquerda provocou a seguinte situação: o ataque morreu e a lateral esquerda ficou desguarnecida. A jogada do gol que decretou a vitória saiu nas costas de Éverton e quem estava fazendo a cobertura era Paquetá. 

Um amigo me chamou atenção para a infinidade de cruzamentos do Flamengo no jogo. Se essa era opção, então o melhor era colocar dois atacantes na área para tentar empurrar a bola. O que fez Carpegiani? Colocou o pequeno Marlos Moreno e deixou Vizeu no banco. 

Os elogios a Paquetá fizeram mal ao talentoso jogador. Ele pega na bola e quer enfeitar sempre. Firulas pouco produtivas e individualismo em excesso. Algo não ia bem na Gávea. A discussão entre Paquetá e Diego na partida contra o Emelec já indicava isso. 

Durante sua gestão, Rodrigo Caetano contratou vários jogadores pelo nome  e eles nada acrescentaram. Conca, Ederson, Geuvanio, Mancuello... Melhor parar para não deprimir os rubro-negros. 

E Carpegiani, técnico da maior conquista da história do clube, se despede novamente de forma melancólica, tal como fizera em 2000. 

E o Flamengo das finanças em ordem continua sendo uma zona no futebol. Se persistir a lógica, o time nem passa da primeira fase da Libertadores. A única esperança da torcida reside no fato de que futebol é de humanas. 


O menino, o soldado e a bola

Por mais que os smartphones deem a ideia de que todo mundo é fotógrafo, profissionais da área mostram que “o buraco é mais embaixo”. A foto de Gabriel de Paiva que saiu estampada na primeira página do Globo na quarta-feira 28 de março é daquelas que apenas um clichê pode definir: "uma imagem vale mais do que mil palavras”. 

Vou respeitar os direitos autorais e não vou reproduzi-la, mas como fiz a maior parte da minha vida trabalhando em radio, vou me apropriar de uma característica do veículo, ou seja, descreverei a imagem. 

Na foto, um menino de uns 12, 13 anos, está ao lado de um soldado do exército. O militar parece fazer “embaixadinhas” com a bola do garoto. Ao fundo, o caminhão do exército que estava no complexo do Lins, na Zona Norte do Rio. 

Como disse minha aluna Gabriele Roza, era o encontro de dois jovens. Um com capacete, roupa camuflada e coturno. Outro sem camisa, short e chinelo em apenas um dos pés. A uni-los, a decisão política do Governo Federal de enviar o exército para intervir na segurança pública do Rio. 

O menino que estava na comunidade se negava a interromper a brincadeira mesmo com aquele caminhão, nada natural à paisagem, plantado no meio do seu dia. 

Provavelmente a bola fugiu ao controle do garoto e o soldado desarmou o espírito e se lembrou que também era um jovem. O militar resolveu usar de empatia e devolver a bola para o menino. 

Ao mesmo tempo que jogar bola é um sinal de resistência do menino, talvez fruto de uma coragem infantil, a imagem pode nos levar a pensar em quão cruel é ter um caminhão do exército perto da sua casa, roubando um pouco da sua inocência. 

Aquele menino, que poderia ser meu filho, encara a dura realidade que anos de desmando, abandono, falta de uma política de inclusão séria ocasionaram às comunidades mais carentes. 

O pior é que a foto ilustra uma triste notícia. Mesmo com a pirotecnia e o grande apoio da mídia, a intervenção federal não melhorou os números da segurança no Rio. 

A verdade é que 15 dias após a morte de Marielle Franco, uma das vozes contrárias à intervenção, as autoridades de segurança não encontraram o paradeiro de quem matou a vereadora. 


Resta pensar no falecido compositor Fernando Brant, que na bela canção “Bola de meia, bola de gude” escreve uma frase que pode ilustrar a foto: “Há um menino, há um moleque morando sempre no meu coração. Toda vez que o adulto balança ele vem pra me dar a mão”. A bola da foto pode ser a construção de um diálogo. Enquanto os poderosos se engalfinham soldados e população, podem se aproximar por terem mais em comum do que seus trajes e idades podem sugerir. 

quarta-feira, 28 de março de 2018

O atentado no Paraná

Amigos, vamos dar nome aos bois. O que aconteceu no sul contra os ônibus da caravana do ex-presidente Lula tem um nome: atentado. “Ataque a ônibus da caravana” ou “Tiros são disparados contra a caravana de Lula” foram eufemismos usados pelos grandes jornais para abordar o caso. 

Se nas redes sociais a aniquilação do adversário já era uma prática, o que o mês de março está ensinando aos brasileiros é isso: agora as diferenças são resolvidas à bala. 

Depois do crime bárbaro contra Marielle Franco, o que aconteceu na cidade de Quedas de Iguaçu é mais uma tentativa de ferir de morte a democracia. 

Aí ficamos sabendo de mais um ato de horror neste cortejo de absurdos. Em vez de se solidarizar, ou buscar um discurso apaziguador, o deputado federal Nilson Leitão, líder do PSDB na Câmara, disse ao Estadão que os tiros foram uma armação do PT para se fazer de vítima!

Se duvidasse da autenticidade da agressão, o nobre parlamentar deveria se limitar a dizer um protocolar “vamos esperar o resultado das investigações da polícia”. Em vez disso, Leitão colocou mais álcool na fogueira da intolerância política que cada vez fica mais forte no país. 

As coisas não vão bem. O repórter do Globo que cobria a caravana foi agredido por apoiadores do ex-presidente. Ato de covardia, violento que em nada ajuda a busca por um país melhor e mais justo. 

A temperatura só aumenta. E aí o que faz  o líder, veja bem, o líder do PSDB na Câmara? Diz que o atentado foi armação. Acho que alguém deveria desenhar para este senhor uma coisa. Esses tiros podem ser o estopim de algo imprevisível e incontrolável. Se os líderes não fizerem um armistício, não disserem que as disputas devem ocorrer no voto, que adversários devem ser derrotados e não exterminados, os asseclas vão partir para as soluções radicais. 

Enquanto isso, vamos torcer pra não estar no caminho de criminosos que veem na solução violenta o remédio para solucionar as diferenças. 

Em tempo: no dia vinte e seis de julho de 1930, João Duarte Dantas entrou numa confeitaria na cidade de Recife e assassinou João Pessoa. O sobrinho do ex-presidente Epitacio Pessoa comandava o estado da Paraíba e era vice na chapa de Getúlio Vargas. Os historiadores consideram seu assassinato o estopim que levou à cabo o golpe que colocou Vargas no poder em 1930. 


Páscoa é tempo de pensar em tudo, até em Judas Iscariotes

A Páscoa vai chegando e todo ano fico pensando na figura de Judas Iscariotes. Por favor, não me tratem por blasfemo ou sem coração, quase um ímpio por não pensar no papel de Jesus. 

Fico pensando que Iscariotes é o protótipo do vilão universal. O cidadão traiu Cristo por dinheiro. Além do que, ao se matar, tirou a chance de qualquer vingança que os discípulos poderiam tentar pelo que ele fez. 

Judas mergulhou numa trajetória de ser quase tão lembrado quanto Jesus. Aliás, se o sacrifício de Jesus lembra aos cristãos o grande amor de Deus, a figura de Iscariotes tem um caráter mais utilitário. Todo sábado de aleluia o povo coloca a foto do vilão universal da vez e “malha o Judas”. 

Se você acredita em vida eterna, em céu e em inferno, você não pode ignorar um fato. Tendo em vista que Judas, segundo o que está nas escrituras, foi o instrumento para que o plano de Deus se concretizasse, existe uma boa possibilidade dele ter sido perdoado. 

O suicídio dele foi sinal de arrependimento ou de covardia? Tendo em vista que ele já emplacou o terceiro milênio sendo odiado, talvez a pena dele já tenha sido paga. Sabe-se lá. 

Judas entregou Jesus, mas Pedro, que é Pedro, negou a Jesus Cristo três vezes para escapar de ter o mesmo destino do mestre. 

Sei que os primeiros seis parágrafos podem ser lidos com indignação, mas na verdade, conselho do escriba, devem ser lidos como provocação. Quero fazer um um convite para refletir sobre algumas coisas. 

Quantas vezes na sua vida você esteve na situação de Judas? Egoísmo não dá em árvore. Gente é egoísta. Se você está lendo este texto, obviamente, tem dentro de você esse sentimento. 

Você “malha” o Judas metaforicamente, mas já começou uma intriga no trabalho para desestabilizar alguém com quem você tem alguma diferença?

Você “malha o Judas”, mas não consegue conversar sobre outra coisa que não seja o seu umbigo. Os seus problemas são os maiores do mundo?

Você “malha o Judas”, mas é incapaz de respeitar uma opinião diferente da sua.? Tira da cabeça coisas toscas como: “direitos humanos para humanos direitos”?

Na verdade, “malhamos o Judas”, mas em muitas oportunidades durante a vida perpetramos nossas traições, nossos pequenos delitos. 

Costumamos ser condescendentes com nossas atitudes. Falta-nos espírito crítico. Recalcamos lembranças de atitudes em que ficamos“mal na fita”. 

Na verdade, vamos perder algumas batalhas para o “Judas” dentro de nós. A questão é procurar domestica-lo. Um bom exercício é começar a respeitar quem pensa diferente em termos religiosos, políticos, emocionais e sexuais. 

Afinal, todo mundo tem algum dia de Judas, mas de Jesus, raramente a gente tem. Bem, a menos que você traga esta marca no sobrenome, como o atacante da seleção brasileira de futebol. 


terça-feira, 27 de março de 2018

Dia de aprender com os alunos

As segundas-feiras são dias que fico exaurido. Tudo porque começo minhas aulas às 7h20 e vou até 13h. Depois emendo das 13h às 19h com duas aulas no mestrado. Pois é, como vocês repararam, segunda-feira este cidadão tem que sublimar o almoço. 

Na segunda vivo uma dupla personalidade. Dou aulas de manhã e tenho aulas de tarde. Em que pese minha crença que mesmo quando dou aula, estou aprendendo, a segunda dia 26 foi dia de muito aprendizado. A querida amiga Ítala Maduel promoveu o debate Jornalistas e Direitos Humanos ,na PUC-Rio. Foram convidados alguns alunos e ex-alunos que militam na área. 

Olhei com muito orgulho para gente que até outro dia estava sentada olhando para mim em busca de algo que os ajudasse a compreender a profissão. 

Bruno Alfano, Yzadora Monteiro, Carina Bacelar, Gabriele Roza , Michel Silva, Lola Ferreira, além de Caio Barreto Briso, Luiza Sansão e Edu Carvalho, os três últimos não tive o privilégio de ser professor. 

De cada um deles, poderia tirar uma lição. Do Bruno Alfano, a sensibilidade para fazer a reportagem sobre as crianças que ficaram sem aulas por causa da violência do Rio. Da Yzadora, a batalha para encontrar um caminho próprio para seguir na profissão. Da Gabriele, a noção que o papel do jornalista é de ser um grande mediador de ideias conflitantes. Lola falou um pouco de seu estilo combativo para conseguir as pautas. Da Luiza Sansão, aprendi um pouco sobre a persistência para dar murro na ponta da faca que é fazer jornalismo pelos direitos humanos. Caio mostrou como um repórter deve defender suas convicções, mesmo que a chefia o tente levar a outra direção. Carina lembrou a importância da importância de preservar a integridade profissional. Michel e Edu dividiram com a plateia a experiência de ser jornalistas e morar em comunidades. 

O que esses jovens mostraram no debate é que o caminho é longo, o inimigo é forte, mas tem gente muito capacitada combatendo o bom combate. 

Mas a fala de um  dos jornalistas fez com que eu me tocasse do tamanho da encrenca na cidade. Numa determinada favela da Cidade, três facções disputam os pontos de droga. 

Os moradores de uma faixa dominada por uma quadrilha não podem nem passar na rua sob o domínio de outra. Isso mesmo, restrições territoriais em plena cidade do Rio de Janeiro. 

Muito se falou que com o Muro de Berlim, famílias ficaram separadas por quase três décadas. A queda do muro da vergonha foi muito comemorada. No entanto, bem aqui, no estado sob intervenção militar, há um muro de demolição muito mais difícil. 

O medo, a inoperância e o terror são a argamassa desse muro. Enquanto não for compreendido que, para cair, esse muro precisa muito mais do que operações militares. Caso contrário, ele vai ficar cada vez mais firme. 

Jornalismo é dar visibilidade aos que precisam, lutar contra a intolerância religiosa, contar histórias que sirvam para melhorar a sociedade, é não se calar diante de injustiças, dar voz a quem não consegue falar. Por isso, me sinto orgulhoso de fazer parte desta tribo. Tribo que tem combatentes tão aguerridos. 


segunda-feira, 26 de março de 2018

Dezenove anos em dezenove fatos no Sistema Globo de Rádio


Como a SGR está deixando a Rua do Russel 434, resolvi fazer uma antologia de meus momentos lá. Como habitei aquele prédio entre os anos de 1998 e 2017, ou seja, 19 anos, vou fazer uma lista de 19 momentos que marcaram minha trajetória por lá. Os eventos não têm ordem cronológica ou de importância. É uma lista de lembranças. Bem, vai começar a brincadeira de Buzzfeed. 

1)- Soube da morte de minha mãe enquanto estava de plantão. Já contei a história num post, logo não vou me estender no assunto. 

2)- Enquanto fechava o Globo no Ar em 2003, minha mulher me ligou dizendo que meu filho resolvera chegar quatro dias mais cedo. Fiz o percurso Gloria-Humaitá em 10 minutos. 

3)- Estava preparando a pauta  dos repórteres mas sofria horrores com uma alergia. Inacreditavelmente, naquela época, a redação tinha carpete. Dei um espirro tão forte que travei a coluna. Fui levado ao hospital e fiquei 15 dias de cama. 

4)- Anunciar na Rádio Globo que o novo Papa se chamava Bento XVI. Ao voltar ao estúdio, soube que em outros veículos o novo pontífice se chamava Benedito. Imaginem o alívio de estar certo. Errar nome de papa deve garantir passaporte para o Hades. 

5)- Chegava pra trabalhar no plantão de carnaval de 2013 e uma produtora entrou na minha sala e avisou: o papa Bento XVI renunciou. Como não reagi, ela perguntou: “você entendeu?” Entender, eu tinha entendido, só não queria acreditar. 

6)- Atender uma ligação do comandante do Grupamento Marítimo e receber a informação: caiu um ultraleve em Mangaratiba. O Herbert Viana estava dentro. 

7)- Apresentar o primeiro Globo no Ar. A cabine de locução estava em obras e tive que ler o jornal na frente do Haroldo de Andrade. Tremi dos pés à cabeça.

8)- Ouvir de Gérson, o Canhotinha de Ouro, um longo relato sobre a tática para o Brasil vencer a Itália na final da Copa de 70. 

9)- Eu e o Luiz Mendes fomos os únicos a colocar o Brasil como campeão da Copa de 2002 no bolão da emissora. Aliás, todas as histórias que ouvi do Luiz Mendes na redação entram na antologia. 

10)-Apresentar a Domingueira da Globo. Durante 9 meses, o fim dos meus domingos era no ar, me divertindo. Eu era feliz e sabia. 

11)- Anunciar o naufrágio da P-36 na Bacia de Campos. Sair da redação, correndo, com a roupa do corpo para fazer a cobertura em Macaé. 

12)- Correr para pegar elevador e perceber um pouco antes que apesar da porta aberta, ele não estava no lugar. Seria uma queda livre de seis andares. Para ficar claro, eu não caí.

13)- O primeiro programa que apresentei na CBN. Um CBN Rio porque meu irmão Alexandre Caroli estava afônico. Soube que apresentaria o programa 10 minutos antes de entrar no ar. De novo, tremi dos pés à cabeça.

14)- O primeiro programa que apresentei na Globo. Globo Cidade. O titular, Eraldo Leite, estava de folga e fui para o microfone. 

 15) - Brasil 1 X 7 Alemanha. Não vi o terceiro, o quarto e o quinto gols. Saí para beber água e quando voltei a desgraça já estava consumada. 

16)- Acompanhar o anúncio do Papa Francisco e não entender a voz embolada do Camerlengo. 

17)- O 11 de setembro e a sensação de incredulidade das imagens vistas na televisão. 

18)- Meu último dia na CBN em 2007.  Saí chorando e deixando muita gente querida por lá. 

19)- Meu último dia na Rádio Globo em 2017. Saí de lá chorando, comendo bolo de laranja (o meu preferido) e recebendo uma salva de palmas, que realmente não me acho merecedor. 


domingo, 25 de março de 2018

Escrever é abrir a alma. O dia em que perdi minha mãe


Em 2018 o calendário está coincidindo com o de 2001. Percebi este detalhe por causa do dia 25 de março. Era um domingo, como hoje. 

O ano de 2001 estava pródigo em notícias impactantes até ali. Fora o ano em que aconteceu o acidente com o cantor Herbert Viana, que o deixou paraplégico; a morte do governador de São Paulo, Mário Covas; e o naufrágio da plataforma P-36, na Bacia de Campos. Até 31 de dezembro aconteceria ainda o sequestro da filha de Silvio Santos, do próprio Silvio, o 11 de setembro e a morte de Cassia Eller. 

Vou continuar falando de março. Eu havia passado a semana anterior ao dia 25 no município de Macaé, cobrindo o desastre da P-36. Folguei na sexta, dia 23 para poder encarar o plantão no fim de semana. Como escrevi lá em cima, era um domingo e estavam comigo na Rua do Russel 434 minhas amigas Adriana França e Carolina Morand. 

Minha mãe, Dona Alzira, não estava bem há alguns meses. Pouco mais de um mês antes o médico me prevenira: “o coração da sua mãe é como um velho cavalo. Nos últimos tempos estamos dando chicotadas para ele andar, mas uma hora, ele vai parar”. 

Lembro ainda de uma conversa que meu futuro sogro teve comigo. Experiente e por ter passado por algumas perdas na vida, ele foi preparando meu espírito durante uma carona até o hospital que minha mãe estava internada. Na hora do diálogo, não entendi que o objetivo era me preparar para o desenlace próximo. 

Olhando o passado, o desenrolar dos fatos levava a um fim óbvio. No entanto o presente e a fuga da aceitação nublam a visão para desenlaces óbvios. 

Voltando ao dia 25 de março de 2001. Quando ia para o plantão, minha irmã Judith ligou dizendo que minha mãe estava passando mal. Ainda falei com minha mãe ao telefone. Ela disse que estava tudo caminhando e que eu poderia ir trabalhar para depois encontrá-la. Aquelas internações haviam se transformado em rotina nos últimos tempos. Eu e ela avaliamos que seria como das outras vezes. Morávamos na Rua Dona Mariana, mas eu não havia dormido em casa. 

Minha irmã ligou para o plano de saúde pedindo uma ambulância. Essa parte foi rápida. Difícil foi a que se seguiu. O plano estava sendo descredenciado de várias unidades. Minha mãe recebia os cuidados de uma equipe de socorristas dedicada, mas a ambulância não tinha todos os recursos para atender quadros como o dela. 

Depois de quase uma hora parada em frente de casa, período em que eu e minha irmã ligávamos para vários hospitais tentando vaga para minha mãe, a médica tomou a atitude de se dirigir para o único lugar em que havia alguma chance de internar minha mãe, uma clínica no Irajá. Minha mente recalcou o nome do hospital. Reconheço que não faço questão de lembrar. 


Minha mãe foi levada para o hospital. De acordo com que a médica me contou mais tarde, durante o percurso entre Botafogo e Irajá ela foi reanimada algumas vezes. 

Eu estava aflito por notícias. Ligava insistentemente para o hospital. Numa das tentativas me atenderam. Nela, fui informado que os médicos estavam tentando reanimar uma paciente que chegará em estado muito grave. Aquilo doeu de um jeito que as dores dos maus pressentimentos doem. A voz do outro lado me dispensou aflita. 

Passados alguns minutos, tentei novamente e o telefone tocou infinitamente. Não desisti. Finalmente depois de muita insistência, alguém atendeu. 

Falei que era filho da Dona Alzira e queria saber como ela estava. O médico foi lacônico: “ela obitou “. Aquelas duas palavras foram ditas de uma forma seca e impessoal. Eu repeti a frase em forma de pergunta, súplica e desespero. Dezessete anos depois ainda dói lembrar, mas reconhecer a dor é um dos passos para que ela não se torne obstáculo intransponível.

Lembro ter dado o berro mais gutural da minha existência e irromper num choro desesperado. Carol e Adriana tentaram me consolar, pegaram minha mão e fizeram aquilo que os grandes amigos fazem; deram-me o ombro para que eu desabasse. Em pouco tempo minha namorada e futura mulher chegou à redação para me buscar e me levar ao hospital.

Do caminho da Glória ao Irajá fui pensando no que me disse Dona Alzira quando lhe contei que casaria no final de junho: “está longe. Não vou ao seu casamento. Mas você vai ser feliz”. Achei no dia que era drama, mas hoje vejo que era certeza.


Quando cheguei ao hospital, a médica socorrista me disse que estava revoltada com o plano de saúde. Que se eu quisesse processá-lo, ela testemunharia. Ela disse ainda que aquilo fora um absurdo e que, se eu quisesse, compraria a briga comigo. 

Agradeci, mas nada fiz. Aquilo não traria minha mãe de volta. Aquele dia 25 de março foi muito difícil. Eu vesti minha mãe para o velório. A temperatura fria de seu corpo inerte ainda está em algum lugar profundo da minha alma. 

Escrevo este texto para expurgar aquela dor. Passados 17 anos, a dor se transformou em boa saudade. O ano de 2001, apesar de tudo, trouxe muitas coisas boas. Por exemplo, casei e fui padrinho em dois casamentos de pessoas especiais.   

No mundo afetivo não existe ontem. As pessoas que amamos estão sempre presentes. Como disse minha prima de 88 anos, a gente não morre, vive diferente. Gosto de acreditar que minha mãe está por aqui. De algum lugar que eu não vejo, ela me abençoa, faz um cafuné e vela pelos filhos, netos e bisnetos.

sábado, 24 de março de 2018

A gourmetização da Rádio Globo e as lições que a nova Jornal do Brasil AM pode tirar


Um caminhão de mudança na porta do edifício mais emblemático do rádio carioca. É inevitável. Vai ser concluído nesta semana o desmonte do mítico endereço da Rua do Russel 434. O prédio era enorme para o que se transformou o Sistema Globo de Rádio. Depois de seguidas demissões havia espaços que pareciam os de cidades fantasma. 

Para quem viveu os anos de auge e bonança financeira da empresa, olhar as cadeiras vazias, depois as salas sem cadeira e, por fim, luzes apagadas e as portas fechadas dava uma dor na alma. 

A questão é que o velho modelo do SGR sucumbiu. E na vida quando o naufrágio se aproxima, há dois caminhos: corta-se para tirar o peso e tentar adiar a derrota, ou investe-se tudo no que resta de força nos motores, para que o navio consiga chegar a algum porto. 

A direção do SGR decidiu cortar em vez de investir. O tempo dirá se o pragmatismo dos números funcionou. A verdade é que na batalha da afetividade, as emissoras perderam. Globo e CBN estavam impregnadas na alma da cidade. Tupi e Bandnews ocuparam essas posições. A Globo, que tentou um segmento mais qualificado, até agora vê a JB, em termos de relevância, audiência e receita, a uma distância como do homem à lua. 

Diz-se que uma das estratégias para a mudança da capital do Rio para Brasília estava no encastelamento dos poderosos. Era uma maneira de evitar as pressões populares. A verdade é que Brasília cresceu e, hoje, as manifestações chegam bem perto dos palácios. A mesma estratégia teria sido usada na Ilha do Fundão. O objetivo é que os perigosos estudantes ficassem dispersos num campus inóspito da UFRJ. Coisas de século XX. O smartphone acabou com os empecilhos espaciais que tentaram impor às manifestações. 

A ida da Globo para o Projac, à guisa de representar uma integração com a TV, tem esse efeito de afastamento do público. As catracas, seguranças e muros de Jacarepaguá são quase intransponíveis a quem se deslocava longas distâncias para levar um bolinho de fubá, uma carta com pedido de emprego, ou um paninho bordado com o nome do comunicador, produtor ou repórter preferido. 

Estamos vendo o encerramento da cerimônia fúnebre da velha Rádio Globo e do velho SGR. Começou com a destruição do painel com as fotos dos grandes comunicadores da casa e a colocação no seu lugar de uma parede preta. Passou pela mudança da produção da Globo para o Projac e se concluiu com um caminhão de mudança na porta do SGR, para levar os restos mortais do que já foi a maior rádio do Brasil e a mais importante rádio jornalística do pais. 

A Rádio Globo se gourmetizou. Afastou-se do público que a fez relevante. Primeiro, o afastamento foi no conteúdo, agora, fisicamente.

Uma das justificativas para a mudança é a integração com outros veículos do grupo. Rádio Globo com a TV e CBN com o jornal. O irônico e paradoxal é que ao se integrar a outras empresas do grupo, o próprio SGR se desintegrou. 

A ida da CBN para o prédio do Globo e a maioria da produção da Globo para o Projac (OK, Estúdios Globo) parece a triste história de dois irmãos que perderam os pais num acidente. Os dois se separam e vão pra casa de parentes. Com o tempo perdem os laços fraternos. O núcleo familiar deles se desfaz, até que no lugar dos retratos na parede surja uma tinta preta que apague as lembranças. 

Que a nova Rádio Jornal do Brasil AM não se esqueça de duas lições. Para fazer jornalismo tem que ter jornalista e a empatia com o público não é só desejável, é vital para uma emissora.