terça-feira, 30 de abril de 2019

Beth Carvalho, a Rainha do Samba

Há mais de 25 anos não via um show de Beth Carvalho. Falha minha. Coisinha do Pai e Andança fazem parte da minha infância e da minha formação como ouvinte musical. Logo, é um problema que eu devo resolver com a minha consciência de fã. 

Beth Carvalho era uma menina da Zona Sul do Rio que se encantou com o ritmo que vinha do morro. A cantora ajudou o samba a entrar na classe média, lançou inúmeros compositores, tanto é que é chamada de madrinha por vários deles, e jogou luz na obra de grandes mestres como Nelson Cavaquinho. A interpretação dela para Folhas Secas é inesquecível e definitiva.

Esses shows que vi da cantora são da época em que eu trabalhava como assistente de produção no People, casa noturna que ficava na Bartolomeu Mitre, no Leblon. O endereço guarda inúmeros serviços prestados à música brasileira e abrigar os shows de Beth foi um deles. 

Nos anos 70 e 80, Beth Carvalho foi uma Midas do samba. Emplacava sucesso atrás de sucesso. Quando acompanhei seus shows, ela ainda frequentava as paradas de sucesso, no entanto, sem a força de antes. Mas a Rainha do Samba já estava no Olimpo. Continua fazendo muitos shows. 

Ao lidar com ela constatei um temperamento forte e um carisma impressionante. Fazendo contas rápidas, me dei conta que a cantora tinha na ocasião daquela temporada a mesma idade do que eu hoje em dia. 

Há poucos meses Beth fez um show deitada numa cama. Só alguém com sua personalidade toparia tal situação. Na época, apesar de reconhecer nisso uma atitude muito corajosa, achei que ela poderia ter se poupado. Mas a majestade permite tais ousadias. 

Eu vou ficar com a Beth dos cabelos grandes, dos vestidos brancos rodados tomara-que-caia, de um sorriso cativante e a voz poderosa. Essa Beth é eterna: madrinha de tantos compositores, Rainha do Samba. 

Vingadores - sem spoiler e sem choro

Vi a maioria dos filmes dos heróis da Marvel. Todos por culpa dos meus filhos. Sempre assisti a eles com a consultoria do meu filho. Assim, ele me contava algo que eu havia perdido ou esquecido. 

No entanto, para ver Vingadores-Ultimato, ele trocou minha companhia. Acontece. Adolescentes devem trocar a companhia dos pais nas idas ao cinema. Faz parte do corte do cordão umbilical emocional. Fui com minha filha. Ela também já trocou minha companhia, mas desta vez resolveu me dar uma colher de chá e me chamou para ir ao cinema.  

Fui com ela numa sessão às 8 da noite de domingo. Um desafio para quem já está quase na casa dos 50 e teve um dia cheio. A semana prometia ser intensa, mas fui ao cinema por algumas razões. A principal, o pedido da minha filha. A segunda foi muito importante também, não ficar excluído. 

Sim, há dois assuntos no momento que você tem que estar por dentro. Game of Thrones e Vingadores. Como sou meio sem saco para essa narrativa de dragões, reis medievais, que não são medievais e essas coisas, restou-me acompanhar a saga da Marvel. Só dessa forma não me sentiria um sem-assunto. 

Confesso uma falha séria. Não vi Senhor dos Anéis e não li Senhor os Anéis. Li apenas os quatro primeiros livros de Harry Potter e não vi o último filme, aquele que concluía a trama do bruxo. Quanto a falta de interesse por GOT e SDA é trauma de um filme horroroso chamado Willow, na Terra da Magia, que por algum motivo, me lembra esse tipo de narrativa. Já Harry Potter, talvez um dia eu conclua. 

Mas vendo o onipresente Vingadores-Ultimato, nada me surpreendeu e não chorei. Diante de uma aluna que me disse ter chorado 5 vezes, senti-me insensível. Concluí que o tempo torna nossas lágrimas seletivas. Escolhemos o que vai merecer nosso envolvimento a ponto de chorar. 

Por exemplo, no mesmo domingo que assisti Vingadores, passei a tarde inteira numa festival de dança. Minha filha estava participando e a coreografia da qual ela fez parte ganhou numa das categorias. Tentei segurar as lágrimas mas a felicidade dela era tão genuína e espontânea que não aguentei e chorei. 

Então, aquele festival de dança, ocorrido num domingo calorento em que seguidamente testemunhei esforço, disciplina, superação e talento mudou minhas referências sobre super-heróis. Na ribalta, profissionais e alunos da dança voam de verdade, com pouco ou nenhum efeito especial e muita dedicação. 

domingo, 21 de abril de 2019

Solidão na Páscoa

Fui ao clube com um livro na mochila. O objetivo era ler e ao mesmo tempo pegar um sol. Até agora foi a única atividade diurna que pude chamar de lazer neste feriadão. Estou atracado em alguns livros, pois tenho um desafio acadêmico e tanto neste ano, desta forma, tempo livre ganhou a definição de inexistente nesses dias. 

Com a compreensão habitual da minha mulher me mandei de casa para um momento de solidão opcional. Quem sabe entre um mergulho e outro vou montando o quebra-cabeça que arrumei ao me propor fazer uma dissertação de mestrado. 

Eis que quando estou em meu momento “lobo solitário” percebo a inquietação de uma mulher. Eu já tinha notado sua presença antes mesmo de chegar à piscina. Em uma das áreas do clube ela fazia uma chamada de vídeo para alguns parentes. Falava alto e pedia para ver o rosto de todos. Pelo sotaque, notei que ela poderia ser de outra parte do Brasil. 

Ela deve ter mais de 65 anos. Numa leitura do arquétipo apenas, ela tem todo perfil de ser a matriarca de um clã. Num Domingo de Páscoa isso poderia representar inúmeras atividades para receber a família. Isso é a leitura leviana e superficial de alguém que julgou uma situação por um simples olhar. Abandonei-a e voltei minhas energias para a salada teórica que me meti tentando entender a mistura de consumidores e cidadãos segundo Néstor Garcia Canclini. 

Na piscina, vejo-a novamente. Chegou falando alto e dando bom dia a um grupo de pessoas mais ou menos da idade dela. Pensei que ela se sentaria com o grupo, mas não. Seguiu e sentou-se ao meu lado. Em todos os movimentos parecia querer estabelecer algum contato. Quando ela chegou, sorri, mas voltei meus olhos novamente para o livro. Houve um momento que ela se levantou e falou comigo: “acho que o telefone tocou”. Eu não tinha ouvido. E, de fato, não tocara. Depois, ela tentou entabular uma conversa sobre temperatura, sol quente e umidade. Conversa a qual respondi polidamente, com um sorriso superficial. 

Fique pensando que talvez naquela mulher a solidão não fosse uma questão de escolha, como foi a minha nesta manhã. Procurei uma aliança nos dedos, ou quem sabe duas, a que indicaria viuvez. Não encontrei. 

Apesar da Babel que pode se transformar a casa com dois adolescentes,é bom pensar no som que as companhias fazem. Como é bom ter a minha mulher para me dar a mão quando inevitavelmente tenho que entrar num avião. Não é um exemplo comezinho , o companheirismo se faz nas pequenas coisas. 

Admiro os que conseguem conviver com a solidão, se bastar com seus livros e séries por demanda, chamadas de vídeo para outras localidades e superficiais conversas na piscina de um clube. Não sou assim e espero que a solidão não me faça companhia. Ou melhor, que ela aconteça nos momentos em que eu optar por ela. E que essa opção se permita passageira. 

E aos que estão em grandes mesas ou na frente da TV, comendo a pizza que sobrou do jantar de ontem, e também para os desalentados que não sabem o que comerão amanhã, que a vida proporcione a Páscoa, isto é, o ressurgimento e a ressureição. 

sábado, 20 de abril de 2019

A volta por cima de Isabela Garcia

Quando Isabela Garcia foi demitida da TV Globo, na mesma leva que Malu Mader, fiz um texto lamentando. Afinal, parecia a ação inclemente do tempo numa carreira que na televisão brasileira parece querer apenas atores jovens e influenciadores digitais. 

Fiquei muito feliz quando vi que Isabela faria parte do elenco da novela Sétimo Guardião. Pensei que ela seria relegada a ser coadjuvante, um papel que serviria de homenagem discreta do autor a alguém com tantos serviços prestado à emissora. 

No entanto, Isabela Garcia se impôs e fez de sua Judith um personagem central na novela de Aguinaldo Silva. O Sétimo Guardião tem bons desempenhos, como o de Lília Cabral, Toni Ramos e Leticia Spiller. Afetivamente, torci bastante para que a trama desse certo pela presença no elenco de um querido amigo. 

No entanto, Sétimo Guardião tem uma trama acidentada, abalada por problemas nos bastidores. Primeiro vazou um desentendimento de Lília Cabral com Marina Ruy Barbosa. A veterana atriz se irritou com um atraso na gravação da mocinha do folhetim. Depois houve o Loretogate, a rumorosa separação de José Loreto e Débora Nascimento, em que na vida real os atores foram se desentendendo. E a fofoca só aumentava. 

Agora, enquanto vários personagens vão morrendo na trama, cresce o papel de Judith. Ela começou como a subserviente auxiliar. No entanto a governanta vai mostrando que sua voz baixa e seus gestos contidos escondem muita coisa. Aguinaldo Silva pode reservar a ela o grande papel nesta reta final da novela: a serial killer dos guardiões. 

Uma vilã que se revela aos poucos não é um recurso novo na dramaturgia, mas é uma solução narrativa quase sempre interessante. Isabela Garcia pode salvar um pouco da novela, que se mostra uma aposta mal feita do quase sempre certeiro Aguinaldo Silva. O folhetim parece ter se perdido em meio a muitas histórias. 


Então, por toda ligação afetiva que desenvolvi com Isabela Garcia como telespectador e até por sermos da mesma geração, torço para que Judith seja a grande vilã da novela Sétimo Guardião. 

Flamengo está com vergonha da favela?

É um absurdo a decisão do departamento que administra as redes sociais do Flamengo de proibir a expressão “festa na favela”. A justificativa, segundo reportagem publicada pelo jornal Extra, de que o termo remeteria a uma expressão de violência é por si só preconceituosa. Ao gritar “festa na favela” a torcida afirma ser uma festa popular, em que estão eliminadas as diferenças sociais. Ao cantar “festa na favela” a torcida se apropriou de uma expressão usada para deprecia-lá e devolveu com um canto de exaltação. 

No entanto, o Flamengo do êxito financeiro, das arrecadações milionárias quer “embranquecer” suas tradições. O Flamengo é popular e esse é seu maior patrimônio. O título de maior expressão alcançado pelo clube no século XXI, o Brasileiro de 2009, foi conquistado sob a liderança de Adriano, um favelado orgulhoso de sua origem. Adriano, formado na base, oriundo da Vila Cruzeiro, é a cara do Flamengo. 

O Flamengo quer promover uma “gentrificação futebolística”. O termo vem do inglês Gentry, pessoas ricas que são próximas da realeza. A expressão surgiu nos anos 1960 quando vários gentryers se mudaram para um bairro operário inglês. Os preços dos imóveis no local dispararam e os antigos moradores não tiveram mais condições de ficar ali. 

O estádios tipo arena incentivaram esse processo. O fim da geral, e por consequência, a extinção dos ingressos popularíssimos foi mais um elemento para essa elitização. Conversava com um amigo vascaíno sobre o segundo jogo da final do carioca. Ele me explicou com um meme que já tinha jogado a toalha. Eu, precavido, disse que ainda haveria 90 minutos e que futebol é futebol. Ele foi curto, grosso e certeiro na resposta: “futebol é grana”. 

Que fique clara uma coisa. Não sou obscurantista, não acredito que o Flamengo será um time vencedor novamente apenas se for irresponsável financeiramente. Também não creio que é glamuroso ser campeão e dever 3 meses de salário. O que defendo é que o clube não continue com esse processo de “higienização”. 

(Aqui segue o link da negativa do Flamengo. Espero que a nota não seja apenas uma resposta depois de ver o absurdo da medida  



O Flamengo não pode ter vergonha de usar “festa na favela” em suas redes sociais. O Flamengo deve ter orgulho por ser o clube da favela. Na verdade, o Flamengo é maioria em todos os recortes sociais e etários no Rio de Janeiro. No entanto, a marca mais forte é ser o clube do “povão”. E o maior símbolo disso é ser da favela. 


O departamento que cuida das redes sociais do Flamengo deveria aprender, se não sabe: a favela deu ao Rio Cartola, Zé Ketti, Mangueira, Salgueiro e Adriano Imperador. Se há violência na favela, não se deve estigmatiza-la por isso. Deve sim haver uma inclusão para que sobressaiam a força do canto, a beleza criativa e a fibra do trabalhador que mora lá. https://www.instagram.com/p/BwfMympAzzs/?utm_source=ig_share_sheet&igshid=vqbbk5g3t7aw)

sexta-feira, 19 de abril de 2019

Desenferrujando ao vivo

Depois de mais de dois anos e um infarto entrei novamente num estúdio de rádio. Estava sentindo falta daquela adrenalina. Os amigos Roberto Canazio e Heloisa Paladino me proporcionaram matar a saudade. 

Como foi divertido sentir novamente aquela sensação de salto no escuro que dá quando o microfone se abre e você tem que falar algo inteligível. Estava enferrujado e inseguro de como seria a primeira intervenção. Quem é do mar não enjoa. Em pouco tempo já estava me sentindo à vontade. Nos últimos meses fiz podcasts como o E agora, José, o Novelando e da Editora Record, mas estar ao vivo numa rádio de grande audiência, como a Paradiso, é bem diferente. 

Outra coisa importante: olhar como Roberto Canazio se comporta quando o microfone está aberto é uma aula para quem ama o veículo e cresceu ouvindo Haroldo de Andrade, Antônio Carlos e Paulo Giovanni. A experiência faz com que Canazio tire da cartola assuntos para manter o programa instigante tanto para quem está ouvindo quanto para quem está no estúdio. 

Fiz um elogio a ele fora do ar e ele tratou de dividir com Heloisa o mérito. Isso reafirma o sentido que rádio é ofício de equipe.  Canazio, Heloisa e o operador Gilberto mostraram entrosamento. O programa completou a primeira semana no ar e como qualquer atração vai sofrer ajustes. Nesta sexta, por exemplo, Canazio ressaltou que a interatividade estava afetada porque não tinha como ouvir as mensagens de WhatsApp. Nada que comprometa a qualidade do programa. É muito bom ter Canazio de segunda a sexta no ar. É importante poder sintonizar e acompanhar suas opiniões. 

Ele fez uma menção elogioso a este blog quando me apresentou. Devolvi reconhecendo que o amplo espectro de assuntos que este espaço aborda, se inspira também nas oportunidades que tive de substituí-lo na Rádio Globo. Quando se apresenta um programa ao vivo de três horas, como era o caso, o repertório tem que ser variado. E repertório variado é uma das características de Roberto Canazio. 


Então vai ser assim, quando for chamado para o programa irei com prazer, mas também com o espírito de quem foi convocado. Para quem, como eu, vive de ensinar e escutar radio, poder participar de um programa é uma alegria, um prazer enfim, um privilégio. 

quinta-feira, 18 de abril de 2019

As zonas de exclusão jornalística voltaram

Ao escrever sobre os problemas crônicos de ocupação desordenada do solo no Rio de Janeiro, escrevi sobre uma velha máxima da política, aquela de que não há espaços vazios e que por isso as milícias ocuparam na Muzema as lacunas deixadas pelo Estado. 

Enquanto escrevia sobre isso, equipes de jornalistas que acompanhavam o resgate dos corpos que estão embaixo dos escombros foram intimidados por homens suspeitos. Eles fotografaram os jornalistas e chegaram a seguir uma das equipes. 

Logo depois da morte do jornalista Tim Lopes, em 2002, as redações do Rio de Janeiro deram a ordem de que os repórteres deveriam evitar entrar nas comunidades para que eles não corressem risco. Em 2008, tenta do fazer seu trabalho para tirar do julgo de bandidos a comunidade do Batan, uma equipe do Jornal O Dia foi espancado e torturada  por milicianos. 

Depois desses casos, a ilusão que representou a era das UPPs deu a falsa impressão que o estado tinha recuperado o controle dessas áreas. Tudo não passou de uma quimera. 

O que mostra o episódio da Muzema é que o estado voltou a ter zonas de exclusão. E nelas impera o estado paralelo. Infelizmente, os repórteres correm um sério risco se continuarem cobrindo o resgate dos corpos na favela. 

E o discurso do “prendo e arrebento” que alavancou a vitória de Wilson Witzel já está se mostrando ineficaz. A política de segurança da nova ordem produziu um músico morto com 80 tiros quando ia para um chá de bebê. E agora, a intimidação dos jornalistas. 

As comunidades são os mais prejudicados se os repórteres não puderem mais entrar nessas zonas de exclusão. Pois passarão a ser reféns dos bandidos e dos abusos da polícia sem a fiscalização jornalística. 

Minha solidariedade aos colegas que passaram momentos de terror ao serem intimidados sem garantias para exercer seu trabalho em segurança. 


As estátuas de pedra do Rio



Toda vez que olho esse morro penso que ele parece  perfil da cabeça de um elefante que se ergue por trás dos prédios. Minha tia Nelly olha para o maciço da Tijuca e vê uma leoa. É mal de família, olhamos os morros da cidade e vemos animais. Numa viagem quase lisérgica, podemos pensar que eles eram bichos que foram ficando tão velhos que viraram estátuas de pedra. 

Isso me lembrou o personagem bíblico Ló. Ele era sobrinho de Abraão e segundo as escrituras foi salvo da destruição de Sodoma por dois anjos. Ele, a mulher e suas duas filhas escaparam. Os quatro receberam a ordem de não olhar para trás. No entanto, a mulher dele olhou e virou uma estátua, só que de sal. 

Diante de algumas coisas que aconteceram nos últimos anos no Rio de Janeiro, fiquei pensando se Sodoma não seria aqui. Vou apenas mudar a matéria prima das estátuas. Em vez de sal, pedra. Pode haver alguma imprecisão geográfica em quem contou essa história no Livro de Gênesis. Vamos imaginar versão alternativa à epopeia bíblica. Alguns bichos que presenciaram a destruição da Sodoma-Carioca ainda estão por aqui. Por exemplo, além do elefante e da leoa gigantes a que me referi, o morro Dois Irmãos poderia ser um camelo petrificado pela mesma maldição. Na Baía de Guanabara tem o Cara de Cão, cujo nome não disfarçaria sua origem. 

Volta e meia, a incompetência das autoridades em deixar ocupar áreas inapropriadas provoca a ira das criaturas petrificadas e elas se desfazem de partes de sua anatomia para demarcar território e avisar que o homem não pode chegar tão perto. Diante dos tempos obscurantistas que vivemos, pode ser que alguns tomem a teoria acima como possível, e que todas as desgraças ocorridas na cidade seriam castigo divino pela passado sodomita deste território ocupado por nós. 

No entanto, as tragédias na Muzema e na Babilônia ocorreram por um problema mais terreno e crônico na cidade do Rio de Janeiro: a ocupação desordenada do solo e a ausência do Estado. Em política se diz que não há “espaço vazio”. É isso que ocorre. As milícias são donas da terra que o Estado não tomou posse. 

Enquanto as autoridades não forem firmes em impedir construções  em áreas de risco e não arrumarem soluções minimamente aceitáveis para quem mora nesses locais, vamos, de tempos em tempos, contar nossos mortos embaixo de escombros. 

Não adianta criar conjuntos residenciais para alocar desabrigados em áreas que eles demorem 3 ou 4 horas para chegar ao trabalho. Não se mora em área de risco porque se quer. É tudo uma questão de necessidade. O bem estar do cidadão deve ser uma premissa do estado. More esse cidadão na área nobre ou na periferia. 


Segundo a Bíblia, Sodoma foi destruída por Deus com fogo e enxofre por causa da iniquidade da população. O Rio está na mesma levada. Mas na falta de fogo e enxofre caídos do céu, a gente faz a nossa parte sendo egoístas, intolerantes e votando muito mal. 

quarta-feira, 17 de abril de 2019

As fotos são imortais




Acabo de ver uma foto de quando eu tinha 16 anos. Isso não é uma coisa muito constante para mim. Não tenho um arquivo iconográfico dos mais completas desta época. Hoje em dia, graças à minha mulher e aos avanços da tecnologia tenho muitas fotos. Na fotografia estava com uma pessoa que perdi o contato mais ou menos pela época que a imagem foi registrada. Por não saber se ela gostaria de ter sua imagem publicada no blog, cortei-a. Olhei a foto e fiquei procurando traços daquela pessoa que eu fui. Cheguei a ampliar a foto e me olhar ao mesmo tempo no espelho. De fato,  não encontrei muitas coisas. 

A foto se tornou especial por um motivo. Nela, tenho a mesma idade que meu filho mais velho atualmente. Ou seja, além de procurar traços do que me tornei, quis entrar na máquina do tempo e comparar o cara da foto com meu filho. 

Vi algumas semelhanças, obviamente. Menos do que imaginava. Para a sorte dele, minha mistura com a mãe poupou-lhe do meu nariz. 

Olhar meu sorriso naquela foto é quase como olhar uma esfinge. O que sentia e ansiava naquele momento? Apesar da minha boa memória, o registro me surpreendeu, logo, não consegui resgatar o que sonhava naquele instante. 

Acho que sorria levianamente como só os jovens conseguem sorrir. Um riso sem cálculos, sem jogo de cena. A preocupação com um futuro que parece tão distante que na verdade nem chega a preocupar. Se fosse possível colocar o jovem rosto na alma de hoje talvez descobrisse os sons semelhantes das duas épocas. Refleti e concluí que os medo os une. Nem sei como consegui tirar uma foto com aquelas montanhas ao fundo, sim, havia montanhas ao fundo. Acho que estava bem alto. O sorriso é de esfinge mesmo. 


Além dos mais de 30 anos que separam a pessoa que aparece no retrato da que escreve este texto, certamente há outra  diferença significativa. A imagem aprisionada na fotografia é imortal, o escriba perdeu essa ilusão. Mas acho que quando me distraio continuo com esse sorriso nas fotos. 


terça-feira, 16 de abril de 2019

Rádios que mudam de nome

O ano de 2019 vai marcar uma efeméride que pouca gente ou ninguém vai comemorar. Em 1979, ou seja, há 40 anos, entrava no ar a Rádio Globo São Paulo*. Depois de uma transição de nomes, os 1100 AM ganharam o nome definitivo. 

Para contar essa história recorri à privilegiadíssima memória do radialista, professor e fundador da ONG Unnir, Marcus Aurélio de Carvalho. Ex-gerente da Globo SP, Marcus conta um pouco da saga: “Em 1º de Maio de 1952, o empresário Victor Costa fundou a Rádio Nacional de São Paulo. Ela tinha algumas ligações com a Rádio Nacional do Rio, mas era uma emissora independente fundada pela OVC, Organizações Victor Costa. Essa rádio recebeu muito investimento e lançou gente como Silvio Santos”. 

A década de 1960 marcou a forte expansão do grupo empresarial de Roberto Marinho. Em 1965, ano da inauguração da TV Globo, Marinho comprou a Rádio Nacional da OVC. O empresário carioca queria expandir seus negócios para a maior cidade do país. Em 1966, por exemplo,  ele adquiriu a TV Paulista, que só em 1968 passou a se chamar TV Globo. 

Marcus Aurélio continua a explicar: “Em 1967, mantendo o nome Nacional, pois era uma marca forte em São Paulo, a emissora atingiu a liderança da audiência na cidade. Em 1977 começou um processo de transição do nome da rádio. Primeiramente se chamou Rádio Nacional Globo. Em 1978, Rádio Globo Nacional e, em 1979, Rádio Globo, ou seja, para que o ouvinte soubesse que aquela Globo que estava surgindo era sequência da forte marca que era a Rádio Nacional de São Paulo”. 

Conto essa história para voltar ao tema que sacudiu o fim de semana de quem acompanha os bastidores radiofônicos, uma suposta mudança nos nomes da CBN e da Rádio Globo. Se os atuais gestores quiserem olhar para trás na hora de fazer alguma mudança, há esse exemplo dentro de casa. 

Se eles quisessem mudar o nome da CBN para Globonews, poderiam repetir o exemplo. Primeiramente a Rádio poderia se chamar CBN-Globonews, depois Globonews-CBN e por fim, Globonews. A junção das duas marcas não seria absurdo, pelo contrário, daria unidade. CBN e Globonews parecem duas irmãs filhas dos mesmos país com sobrenomes diferentes. Eu, como ouvinte, não veria problema desde que as características da CBN fossem conservadas. 

Rádio e Televisão são veículos diferentes, com tempo e modo de fazer distintos. Apenas um olhar superficial poderia supor que são o mesmo veículo. Vou dar um exemplo mínimo para explicar o que estou querendo dizer. Na locução de futebol pela TV há espaço para silêncios, na do rádio, não. A velocidade de quem narra na TV e no Rádio também é completamente diferente. 

A direção do SGR negou peremptoriamente o fim da CBN, mas no comunicado enviado aos funcionários, o diretor-geral do SGR deixa aberta a possibilidade de mudança na Rádio Globo:

“(...) não é novidade ou surpresa para ninguém que a Rádio Globo não tem atingido os resultados que esperávamos. Com isso, é natural que haja um questionamento nosso sobre o formato, o escopo e o conteúdo mais adequados. Portanto, nesse caso não posso dizer que não haverá mudanças mas é cedo para afirmar com clareza que mudanças podem ser essas que nos ajudem a virar o jogo(...)”. 

Como jornalistas, esses seres chatos, têm mania de interpretar textos, o comunicado nega o fim da CBN, mas não nega a mudança de nome, nem o deslocamento no organograma do Grupo Globo. 

Se ao fim desse processo, a fumaça virar fogo, os gestores do SGR poderão olhar o exemplo interno para mudar os nomes das emissoras. Uma coisa que escrevi domingo, reafirmo ao fim desse texto. O que vai ao ar nos 98,1 FM do Rio não é o que a população do Rio se acostumou a chamar por mais de 70 anos de Rádio Globo. Mudar o nome desse produto teria um peso muito mais simbólico do que pratico. Aquela Rádio Globo morreu, por uma escolha da direção, que aliás, tinha todo o direito de fazer a escolha. É nisso, eles foram bem sucedidos. Manter a marca com o conteúdo que vai ao ar é quase profanação. 

  • Há quem conteste esses 40 anos, por considerar que devem ser contados os 27 anos em que a rádio se chamou-a Nacional e dai seriam 67 e não 40 anos. O registro dessa discordância é dever do ofício. 


domingo, 14 de abril de 2019

O dial sem a Rádio Globo?

O que mais se comenta na minha bolha são os textos do Anderson Cheni, no blog Cheni em Campo, e do Robson Aldir, no site SRZD, sobre o suposto fim da Rádio Globo e a também suposta mudança de nome da CBN. Segundo os jornalistas, o dial 98,1 viraria Rádio Multishow e a CBN se transformaria em Rádio Globonews. 

Se essas informações forem verdadeiras, gostaria de tratar as supostas mudanças da Globo primeiro. O que motivou a mudança da programação da emissora foi a falta de resultados financeiros. Nunca foi o número de ouvintes, mas sim o que o mercado publicitário chama de “qualificação” desse ouvinte. Em números de 2016, mais de 70% dos ouvintes da Globo tinham acima de 50 anos. Por mais que o “mercado” queira se dizer inclusivo e os tempos sejam mais democráticos, pense nas propagandas que aparecem na TV. Conte quantas pessoas acima de 50 anos aparecem. Me veio à cabeça o anúncio da cerveja Itaipava. Fora Lulu Santos, um jovial sexagenário, procure mais pessoas dessa faixa etária na propaganda. Esse pequeno exemplo pode explicar o problema de ter um público mais velho. 

As manhãs da Rádio Globo até dezembro de 2016 eram campeãs de audiência. Das 6h ao meio-dia a trinca Antônio Carlos-Padre Marcelo - Canazio dava à emissora a liderança da praça Rio de Janeiro. A grande queixa do departamento comercial é que a partir de meio-dia a audiência caia muito e eles não conseguiam vender nesses horários. E a reclamação sempre foi: “o público da Globo é grande, mas pouco atraente para o mercado publicitário”. 

Não adianta o que a massa de admiradores de rádio possa pensar. O mercado publicitário é o convidado de honra dessa festa. Um amigo congolês me ensinou um ditado de sua terra que adoro repetir: “a mão que paga é a mão que governa”. E nos anos 1930 o Brasil poderia ter escolhido outra mão “para pagar”. Roquette-Pinto, o pai do rádio brasileiro, defendia um modelo de financiamento público. Ou seja, as pessoas pagariam uma taxa para manter o serviço de radiodifusão. Seria uma forma parecida com a da BBC britânica. Desse jeito, o público poderia ter mais ingerência no conteúdo das rádios. No entanto, Roquette-Pinto perdeu essa batalha. O modelo de financiamento pela publicidade foi adotado e desde então o “deus-mercado” determina as cartas. 

Apesar das altas audiências, as manhãs da Globo não foram suficientes para financiar a emissora. O envelhecimento da audiência e a queda nas receitas levaram os gestores à decisão de reformular totalmente a programação. A orientação de quem chegou era essa. 

O mundo corporativo tem dessas coisas: “vamos pensar fora da caixa” talvez seja o mantra da vez. Investiu-se no marketing, que proporcionalmente, chegou a ter mais gente do que a produção. O conteúdo que ia ao ar começou a ser pensado por pessoas que nunca tinham trabalhado no veículo. 

No entanto, tantas pessoas do marketing deveriam ter pensado numa coisa. São mais de 70 anos de uma marca presente no cotidiano das pessoas. Rádio é hábito, logo, o nome Rádio Globo tem quase um peso sagrado. O melhor caminho para mudança tão radical seria mudar o nome da emissora logo. O que entrou no ar é completamente diferente do que era antes. Mudar o nome da Rádio Globo agora seria a admissão do fracasso do projeto Nova Rádio Globo, mas pode ser a solução para salvar a empresa. É a história de deixar irem os anéis para preservar os dedos. A Rádio Globo já tinha acabado, só não houve coragem para enterrá-la. Para que a mudança dê certo, tem que combinar com o público e com o mercado publicitário. 

Se a CBN virar Rádio Globonews atende perfeitamente à lógica de sinergia necessária às empresas diante da nova realidade. Faz sentido corporativamente falando. Talvez seja, inclusive, a correção de um erro de origem na fundação do Grupo Globo: Empresas independentes que pouco conversam. 


As notas não falam dos canais de áudio. Esses poderiam ser transferidos para a Som Livre. Diante do encolhimento após seguidos cortes, parece fazer pouco sentido manter o Sistema Globo de Rádio como empresa independente. 

quarta-feira, 10 de abril de 2019

O Rio de Janeiro não sabe para onde ir

O Rio de Janeiro vive como um cachorro que caiu do caminhão da mudança. Por não ter ideia de onde será a nova casa, vive sem rumo. A situação só melhora se encontrar um novo lar. No entanto, essa nova casa traz uma realidade completamente diferente da anterior. 

Durante 197 dos seus 454 anos, o Rio de Janeiro foi a capital do país. Primeiro da colônia, depois do Reino Unido Brasil Portugal, do Império e finalmente, da República. O Rio pode se orgulhar que foi a única cidade americana a ser capital de um reino europeu. 

A questão é que de 1960 para cá tudo mudou. A chegada de Brasília tirou o trono do Rio de Janeiro. Durante a transição o Rio era chamado de Belacap, enquanto a cidade projetada recebia o nome de Novacap. Aos poucos a dura realidade foi se impondo e o Rio foi perdendo sua força política. 

Durante a ditadura militar, os cinco generais-presidentes tinham residências fixas no Rio. A cidade mantinha certa centralidade. As coisas que aconteciam nela ainda repercutiam demais. O assassinato estudante Edson Luis e a consequente Passeata dos 100 mil tiveram palco no Rio de Janeiro. 

No entanto, o tempo foi passando e a transição terminou. Algumas empresas públicas como Petrobras e BNDES ainda têm suas sedes na cidade, mas o Rio passa por um esvaziamento preocupante. A questão é que o Rio, como metrópole moderna, teve sua identidade formada pelo fato de ser a capital do país. 

A importância portuária que fez com que os portugueses escolhessem colocar a colônia aqui foi se perdendo. É relevante destacar que a escolha do Rio se deveu ao fato de ser o porto mais próximo de Minas Gerais. Hoje, Santos ultrapassou a movimentação do Rio, por estar mais perto da locomotiva do país, São Paulo. E o que sobrou para o Rio?

A cidade permaneceu nas décadas de 70, 80 e 90 como o termômetro do que acontecia no país. Isso é possível de ser constatado até em novelas campeãs de audiência. Em 1978, Dancing Days, de Gilberto Braga, foi uma febre. O principal cenário da trama era Zona Sul do Rio. O Brasil queria ser Copacabana. 

Em 1988, o autor volta ao universo da classe média alta do Rio de Janeiro. Os personagens passeavam por pontos conhecidos da cidade como Copacabana e Urca. Na humilde opinião deste telespectador, Vale Tudo foi a obra prima de Gilberto Braga. 

Em 2015, O autor tentou revisitar a trama. A novela Babilônia se passava na Zona Sul do Rio de Janeiro, onde existe uma comunidade com este nome. As citações à Vale Tudo eram sutis. As protagonistas eram a heroína Regina e a vilã Beatriz. Era uma homenagem à Regina Duarte e à Beatriz Segal, que viveram respectivamente a mocinha e a vilã de Vale Tudo. 

Apesar da repetição da dobradinha com Denis Carvalho e a ambientação na Zona Sul do Rio, algo mudara. A ex-capital já não era a cara do Brasil, pelo fato do Brasil ter muitas caras. O país encaretara, fato que  tem ligação direta com a eleição dos ultra-conservadores no campo dos costumes Marcelo Crivella, para Prefeitura do Rio e, posteriormente, Jair Bolsonaro para Presidência da República. 

O país não queria mais ser Copacabana. O Brasil agora era da sofrência e do sertanejo universitário. Não há demérito nisso, é apenas uma constatação. O que antes era periférico nas novelas passou a ser iluminado pela audiência. O próprio Gilberto Braga ao sofrer com os baixos números conseguidos por Babilônia admitiu até um “trauma” adquirido depois da novela. 

O país de agora é muito mais parecido com a realidade do Divino, bairro fictício da novela Avenida Brasil. O local foi inspirado no carioquíssima bairro de Madureira. No entanto, a trama de João Emanuel Carneiro retratava o apogeu da classe C emergente. Era no Rio, mas poderia ser em qualquer bairro periférico do Brasil. 

O Rio de Janeiro foi deixando de ser o local em que se aspira a morar. São Paulo ocupa de uns tempos para cá esse posto. A capital paulista é a cidade das oportunidades, onde se trabalha e se come bem. Uma cidade onde as coisas funcionam. 

O período mais recente em que o Rio deu sinais de uma possível recuperação foi com os investimentos para a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos. E por qual motivo? A cidade foi tratada como capital novamente. Recebeu investimentos e foi embelezada. Descobrimos depois que junto veio uma onda de corrupção impressionante. Estamos pagando a conta.  

Andar pela cidade é um triste constatar do aumento do número de pessoas morando nas ruas e da depreciação dos equipamentos urbanos. Ruas esburacadas, canteiros carecas e mato onde deveria haver grama. 

Vários aspectos podem ser a razão para a guinada conservadora de um estado que elegeu um homem de esquerda como Leonel Brizola duas vezes. A primeira, em plena ditadura. Um desses motivos pode ser o desejo da volta à fase relevante do Rio de Janeiro. Uma fase em que representávamos o que o Brasil queria ser. Tal qual renascentistas que buscavam voltar à cultura greco-romana, queremos, helênicos, voltar ao passado de glórias da cidade. Enquanto o Rio de Janeiro não entender pra onde deve ir, vamos fazer como o cão a que me referi no começo do texto, ou então, vamos olhar no retrovisor e bater na árvore caída em alguma rua da cidade abandonada. 

domingo, 7 de abril de 2019

Os rastros do jornalismo em mim

Entrei numa redação no fim do século passado. Bati pautas numa velha máquina de escrever que esticava sua permanência por lá. Não que seja tão veterano, a máquina é que já não era condizente com a realidade dos veículos jornalísticos. Vamos dizer que era um elemento vintage naquele corre-corre fascinante. Muita coisa mudou nesse tempo, afinal, são mais de 20 anos. Mas um aspecto permanece inalterado. Não é só você que escolhe o jornalismo, o jornalismo também escolhe você. 

Eis que este blog chega ao texto de número 400 justamente em 7 de abril, Dia do Jornalista. Corri para meu bloco de notas a fim de escrever este post antes das badaladas noturnas que viram a folhinha do calendário. Ao longo dessa estrada digital deixei pedaços da minha alma, interrompi lágrimas, sorri recontando histórias, mas, acima de tudo, deixei vestígios da minha alma. 
 
E num momento em que querem desprezar o jornalismo, é a ocasião em que esse jornalismo se faz mais necessário. Há poucos dias fiz um texto em que defendia a profissão. (http://blogdocreso.blogspot.com/2019/04/em-defesa-da-formacao-academica-do.html?m=1) logo, meus argumentos estão expostos ali, e não vou me ater sobre isso hoje. 

Esse texto pretende falar dos rastros e cicatrizes, como descreve a professora Jeanne Marie Gagnebin. A escrita funciona como a ponte que irá permitir que essas memórias (rastros) possam ser deixadas como herança para quem de alguma forma nos acha relevantes. 

Nesta semana, meu filho mais velho fez 16 anos. Como na maioria das vezes, escrevi um texto para ele. Acho que já repeti inúmeras vezes oralmente o quanto a existência dele significa para mim. Mas os escritos que envio a ele serão a forma de deixar os rastros mais nítidos. 

O jornalismo é uma profissão que exige uma dedicação integral de tempo. Como é uma questão de ser e não de estar, intermedeia todas as nossas relações sociais. Em abril de 2003 tive que voar de uma redação para casa a tempo de acompanhar minha mulher ao hospital na hora do nascimento do meu filho. Em março de 2001 estava de plantão e não consegui dar um último beijo na minha mãe. Com meu pai, em julho de 1997, foi a mesma coisa. 

Porque o sacerdócio que você mergulha ao decidir entrar na faculdade para estudar jornalismo exige esse tipo “tributo”. Em troca da nobre missão de escrever o evangelho dos nossos dias, tornamo-nos escravos de uma rotina que muitas vezes sacrifica o tempo em que ficamos com a família. 

Hoje foi um dia que me deu uma certa nostalgia. Lembrei das incertezas se conseguiria emprego, depois da insegurança se me manteria no emprego. Pensei na recompensa afetiva de fazer uma boa matéria. Das inúmeras histórias que testemunhei e contei. Lembrei de quem partiu e me ensinou. Rememorei cicatrizes físicas e emocionais, das vezes que me indignei com o que julguei ser injustiça e das inevitáveis desilusões. 

Como o jornalismo é dinâmico, dei uma olhadinha no retrovisor só para reafirmar a fé. O caminho prossegue e não tenho a menor pretensão de interromper a caminhada tão cedo. O jornalismo deixou minha vida viável. Por intermédio dele vou deixar meus rastros e meus vestígios, como fiz até agora nos 400 textos deste blog. 



sábado, 6 de abril de 2019

Crivella, o morto-vivo

A política da cidade do Rio de Janeiro exige no momento que seja feito Jornalismo. O grifo em letra maiúscula é proposital. O indescritível Marcelo Crivella vai negociar com os vereadores para permanecer no cargo, após a abertura do processo de impeachment na Câmara municipal. 

A casa legislativa do município não tem exatamente um histórico ilibado, já sendo inclusive chamada de “gaiola de ouro ” tal a gama de privilégios que os vereadores tiveram ao longo dos anos. 

O obscurantista prefeito vai ter que sair da “bolha universal” (escrito assim até parece uma contradição em termos, mas nada mais restritivo que o ambiente da Igreja Universal). Ao sentar pra negociar, o que alcaide-ausente terá para oferecer?

Acho que a primeira coisa é saber quem dá as cartas em cada subprefeitura e região administrativa. Os secretários são poucos e por isso, visados. Nessas pequenas células de poder que Crivella vai agir para salvar o pescoço. 

O pior prefeito da história do Rio teve 14 votos contrários à abertura do processo de impeachment. Vai precisar de 18 para se salvar. Teoricamente, não é das tarefas mais complicadas conseguir 4 votos. Usando a caneta e a rearrumação dos cargos no segundo e terceiro escalões tem boas chances de êxito. 

A questão é, se continuar, Crivella, o ausente, vai se tornar Crivella, o morto-vivo. Será refém do mar de concessões que fará para continuar na cadeira. Então, neste momento entra o papel do jornalista. Esse sujeito chato, que coloca luz onde os políticos querem deixar escuro. 

Que trabalhos são desenvolvidos nesses órgãos? Estão funcionando? Serviços que são eficazes correm risco de paralisação por conta do “toma lá dá cá” que vai se seguir? Em que regiões da cidade atuam os vereadores que Crivella pretende cooptar? Essas são algumas das perguntas a serem respondidas até julho, data em que o pedido de impeachment deve entrar em votação. 

A verdade é que o eleitor do Rio saiu perdendo na eleição de 2016. Votou no candidato que julgou menos ruim e purga com um prefeito que abandonou a cidade. Não cuida das ruas, todas horrivelmente esburacadas, não cuida das pessoas, um caminhar pelas ruas do Centro mostra o aumento no número de moradores de rua,  não cuida dos aparelhos culturais... A lista  de “não cuida” é interminável. 

Num mundo ideal, Marcelo Crivella pediria para sair e agradeceria à Câmara de Vereadores por ter lhe mostrado a porta da rua. Mas como mundo ideal não existe, vai se apegar ao cargo e descer ao inferno para manter-se prefeito. Há 826 dias no cargo, os cariocas esperam que o prefeito comece a governar. Se for deposto, Marcelo Crivella pode entrar para a história da cidade do Rio como uma espécie de Viúva Porcina da política, “aquele que foi sem nunca ter sido”. Pensando bem, acho que ele nem precisa ser deposto para ganhar a alcunha. Crivella nunca foi prefeito do Rio, foi no máximo o bispo de uma super congregação da Universal. O pior é que nem dá para dizer bem feito para quem votou nele e se arrependeu. Pois, se o porre para elegê-lo foi dos incautos, a ressaca da vitória respinga em todos os moradores da cidade. 

quarta-feira, 3 de abril de 2019

O lugar de fala no jornalismo

Ouvi um locutor anunciar a notícia de um feminicídio. A voz pausada, grave, competente trazia a neutralidade exigida pelos cânones que regem o perfil da emissora em que ele atua. Quantas vezes ele leu notícias semelhantes?

É duro o ofício de quem lida com notícias todos os dias. Não há a opção pela desintoxicação ou por dar um tempo para não saber de nada que ocorra. Jornalistas  dormem sobressaltados. Sabem que no meio da noite podem ser despertados para cobrir um incêndio de grandes proporções, o desaparecimento de um avião, ou ainda a morte trágica de uma celebridade. 

Um dos desafios do jornalista é não ficar brutalizado diante da barbárie. É não blasé, no sentido que o sociólogo alemão George Simmel define como indiferença em relação às situações. Se por um lado, o sentimento blasé protege e permite ao jornalista narrar os fatos, ele também pode transportar o profissional para um lugar afetivo muito distante. 

Acho que em muitas oportunidades, o  chamado  “lugar de fala” pode mitigar essa indiferença em relação ao dia-a-dia. Conversava com um aluno que virou amigo sobre una matéria que ele acabara de escrever no trabalho. Era uma reportagem sobre pessoas veganas que vivem na periferia. Gostei muito da reportagem e falei a ele sobre o diferencial que é ter o lugar de fala para fazer esse tipo de matéria. 

Ele me respondeu que onde trabalha tem “muita gente que se formou há muito tempo, quando a universidade não tinha quase ninguém de baixa renda, pretos e periféricos. Então é quase sempre um choque de realidade para eles esses assuntos”. 

Dia desses fazia a distribuição de pautas para que os alunos elaborassem uma reportagem. Dentre as pautas, uma era sobre a participação de mulheres em ambientes geralmente dominados por homens, como carpintaria e serviços de bombeiro hidráulico. Por sorteio, a pauta ficou com uma dupla de meninos. Ponderei com a turma e propus trocar a pauta para que um grupo de meninas fizesse a matéria. Avaliei que elas fariam a reportagem com mais propriedade. Obviamente, a decisão é difícil. Muitas pessoas podem até não concordar. 

Acho até possível que um repórter de classe média possa fazer um reportagem sobre áreas periféricas, ou mesmo, que um homem consiga fazer uma pauta de interesse feminino. No entanto, a grande questão é que ao longo do tempo esses grupos não tiveram representatividade. Então, agora que essa representatividade é possível, nada mais natural que essas pautas ganhem voz também por intermédio de quem vive aquela realidade. 

Pouco tempo atrás viveu-se no mainstream da indústria cultural o conflito entre essas situações. O Oscar premiou Green Book com a estatueta de melhor filme, em detrimento de Infiltrado na Klan. Falo tranquilamente sobre isso, porque gostei dos dois filmes. Mas não dá para comparar o tipo de mensagem. O filme de Spike Lee traz na mensagem anti-racista a força de um cineasta que tem “lugar de fala”, ao passo que Green Book é um filme que pode ser traduzido como “eu até tenho amigos negros”. Para que algum não representante dessas áreas periféricas possa fazer uma reportagem alentada sobre a periferia é necessário fazer o que nas ciências sociais chama-se de pesquisa etnográfica. Viver aquela realidade por um tempo. Infelizmente, a velocidade de nossos tempos não permite que os repórteres das grandes redações tenham tempo para esse aprofundamento. 

Em nenhum momento defendo que haja uma exclusão do que no jornalismo se chama de “olhar estrangeiro”.  Na verdade, jornalismo deve ter inclusão e pluralidade. Mas é chegada a hora que essas vozes, tão pouco ouvidas anteriormente, ganhem cada vez mais espaço. É bom para a democracia , para a liberdade e para o jornalismo.