quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020

Os óculos de Marina Colasanti

Seria uma tarde de trabalho como outra qualquer. Apresentei-me à entrevistada, sentei ao lado do outro participante e começaria a gravar um podcast. 

Mesmo com mais de 20 anos de profissão, alguns interlocutores ainda me provocam certa ansiedade. A pessoa que estava na minha frente era uma dessas. 

Fiz questão de não disfarçar o nervosismo. Tem um ponto da vida que a gente enxerga que a honestidade é o único caminho. Fui logo dizendo à escritora Marina Colasanti que perdoasse qualquer deslize provocado por algum resquício de deslumbramento que viesse a contaminar minha entrevista. 

“Marina, é uma grande honra conhecê-la e poder lhe entrevistar”. Ela não perdeu o bom humor: “preferia que você dissesse que é um prazer, quando dizem que é uma honra, fico preocupada, pois parece que estão dizendo ‘foi uma honra lhe conhecer enquanto você está por aqui’, então sempre prefiro que seja um prazer”. Rimos todos, ela, o editor Pedro Vasquez e eu. 

Peguei meus apontamentos no caderno e me deparei com a dura realidade. Esquecera os óculos. Meus hieróglifos somados com a hipermetropia deixavam meus alfarrábios indecifráveis. Generosa, Marina se apressou: “use os meus”. 

Num primeiro momento, rejeitei polidamente. A razão era a seguinte: o diâmetro efetivo de meu crânio é avantajado. Estava com medo de alargar os óculos dela. Mas a escritora insistiu: “Não tem problema, meus óculos são flexíveis”. 

Eu aceitei. Coloquei os óculos de Marina Colasanti e repentinamente, as letras que pareciam um mistério gráfico se descortinaram. Eu pude entender tudo, parecia que uma luz especial havia se apoderado de minha retina.  Os óculos tinham o aro fino e lentes retangulares. Nela, um apetrecho anatomicamente perfeito, em mim, um improviso ótico. Se em termos estéticos não seriam apropriados, em sua funcionalidade, foram perfeitos para mim. 

Durante os pouco mais de 30 minutos em que usei os óculos de Marina Colasanti, pude enxergar as folhas de papel pela ótica dela. Seus óculos são realmente flexíveis. 

Não pude encarnar-lhe a alma apenas com os óculos emprestados. Talvez isso pudesse facilitar muitas das minhas angústias quando olho uma folha em branco. Saberia resolver melhor os entraves que a tentativa de expressar os sentimentos me impõe. 

Ao final da entrevista deixamos o estúdio juntos e acompanhei até a portaria do prédio. Na tarde abafada de verão em Ipanema, ao me despedir, não cometi o erro novamente: “Marina, foi uma grande prazer lhe conhecer”.  Mas cá entre nós, foi uma honra também. 

domingo, 2 de fevereiro de 2020

Trazer para perto as pessoas que se ama

As pessoas chegam a conclusão que envelheceram de diversas formas. Assistindo à decisão da Copa São Paulo de Juniores me deparei com um juiz de 24 anos, ou seja, um árbitro de futebol que tem a metade da minha idade. A ficha já tinha caído um pouco quando a série A do Brasileirão foi disputada com vários treinadores mais novos do que eu. 

Há pouco tempo me deparei com outra coisa cruel da passagem do tempo. Se eu desempenhasse o ofício de ator já não faria papel de jovem na primeira fase de uma novela. Pois é, os atores mais velhos das fases atuais das novelas são da minha idade, ou mais novos. Em Amor de Mãe, Murilo Benício é dois anos mais novo do que eu. Taís Araújo, mais nova do que eu, aliás, da Tais fui até professor. Vladimir Brichita, mais novo. Só Adriana Esteves é mais velha. 

Isso não parece fazer diferença, mas de repente você percebe que já não é o caçulinha, ou como se chamava na minha época “café-com-leite”. 

Agora eu sou o “tio” que recebe os amigos dos filhos em casa, o cara que tenta se enturmar, mas cuja presença constrange e tira a espontaneidade das conversas. O pai que dá aquela envergonhada básica nos rebentos por tentar se “da galera”. 

Perceber a passagem do tempo é fundamental para que o tempo continue passando. Por exemplo, amo futebol. As peladas de fim de semana faziam parte da minha “rotina religiosa”. Hoje, se chuto uma bola uma mísera vez o joelho dói por 15 dias. Não vou falar dos riscos cardíacos inerentes à teimosia de bater uma bolinha. 

E nessa passagem do tempo, a gente não percebe como se afasta dos amigos. Uma das minhas resoluções de ano novo, ainda estamos em fevereiro, o ano ainda é novo, é trazer para perto as pessoas que amo. 

Pegar o telefone e ligar para os amigos que não vejo há muito tempo para conversar, tomar um chopp, relembrar velhas histórias, reviver micos e saudades. Fazer com que o convívio espante a melancolia que a passagem do tempo e a ausência provocam. 

Um amigo me disse que “a gente vive desmarcando os encontros por falta de agenda, mas depois aperta tudo para poder ir aos enterros. Por que a gente não se encontra agora”? A resposta é que a rotina nos massacra e a gente acaba por inércia e preguiça escolhendo os caminhos mais fáceis. 

Quando viramos pais, os pais dos amigos dos nossos filhos se tornam nossos amigos. Mas agora, quando os filhos estão crescendo e as “festinhas” desaparecem temos que conviver com as pontes que construímos ao longo da vida. 

Então vamos nos ver mais, contar as velhas histórias, para revivê-las. Vamos sair da inércia. O tempo pode ser amigo, se a gente fizer isso com ele. Mas a sua crueldade reside no fato de que ele é inexorável e imutável.