segunda-feira, 16 de março de 2020

Os dinossauros e as nossas culpas

A Globalização do capitalismo foi a panaceia do mundo. Consumir num globo sem fronteiras deu uma ideia de poder nunca vista na civilização. A tecnologia aniquilava distâncias, o que antes demorava meses para chegar à periferia do mundo passou a estar presente simultaneamente em todos os  lugares. O capital e a tecnologia, talvez seja um erro semântico separar os dois, são a face triunfalista da globalização. 

A conta começou a salgar quando além dos bytes e da grana, pessoas passaram a atravessar as fronteiras. Num primeiro momento foi bom. Os estrangeiros ocuparam lugares e prestaram serviços que a população local não queria ou não sabia. No entanto, a partir de um determinado momento, o acúmulo de bens e o “bem estar social” começaram a ser prejudicados por essas pessoas globalizadas. As elites queriam apenas os grandes produtos, ou os “grandes cérebros”, mas a globalização das pessoas não trouxe gente apenas para o topo, gente da base da pirâmide também acreditava que trocar a terra natal era a saída para escapar da miséria. O capital e a tecnologia fizeram sonhar e agora queriam fechar a porta. A globalização das pessoas é a etapa que a elite queria evitar. 

Agora é a globalização da doença. Pandemias não são novidade. No entanto, como milhares de voos ligando o ponto mais remoto da terra às grandes metrópoles, uma doença pode se espalhar com a facilidade do fogo numa fábrica de plástico. O coronavírus mostra isso, o que acontece a dezenas de milhares de quilômetros interessa a todos. Louva-se tanto a aldeia global e agora essas Inter-conexões cobram a conta. A saída é ser solidário. Como? Seguindo as instruções das autoridades quanto a isolamento e higiene. Como vi outro dia, não é corona-férias é corona-isolamento. Nesse momento, acontece ao capitalismo o que a gente sempre ouviu dos mais experientes, “vai com calma, pois se não você fica doente e tem que parar”. O capitalismo ficou doente. As bolsas despencam e a indústria do entretenimento está paralisada. As grandes ligas esportivas do mundo interromperam as temporadas. Bilhões indo pelo ralo e tem gente dizendo que é “histerismo”. O coronavírus é uma freada de arrumação. Tomaremos jeito? Dessa vez é uma doença com taxa de letalidade razoavelmente baixa, mas que atinge aos mais velhos de forma cruel. Então a hora é de recolhimento e de aprendizado. Da próxima vez a doença pode ser mais “democrática” e matar mais gente. Não há mais fronteiras, nem para a tecnologia, nem para o capital, nem pra as doenças. Os dinossauros não tiveram culpa por seu destino, nós teremos. 

quarta-feira, 4 de março de 2020

Sobre o ato de escrever

Primeiro eu engravido. 
Pode ser de um pássaro voando. 
A luz que bate diferente no morro em frente da minha janela também pode ser instrumento desta concepção. 

Depois de engravidar, preciso expelir. Não é uma gravidez confortável. No lugar de ultrassom, a angústia serve como lente para verificar os sinais vitais do rebento. 

A gestação é curta. Não demora mais do que dois dias. Preciso que aquela cria se liberte de meu ventre/intelecto para que haja mais espaços disponíveis. 

Não gosto de pentear o filho recém-parido. Dou rápidas olhadas e peço que alguém me ajude na tarefa de zelar por ele para que se torne adulto. 

Depois de nascido, espero que ele ganhe vida sem mim. Na alma dos outros que vão ler. Não há “re-parto”. Inexoravelmente ele esvanece na sua lembrança. 

Filhos expelidos após uma concepção dolorida tendo como leito conjugal, uma folha em branco física ou digital. 

Vai conjunto de letras, pretensiosas e altivas, na busca de uma vida própria que dure mais do que uma postagem no Facebook. Sai de mim, vai e perturba nobres espíritos. 

Vai filho mestiço, meio prosa, meio poema. Entre a pretensão e o talento, entre o orgulho e a consciência da improbabilidade de chegar a algum lugar. O que vale é a caminhada que eles empreendem depois de cortar o cordão umbilical. 

terça-feira, 3 de março de 2020

Um pouco sobre Amor de Mãe parte 2

Thelma mostra que Adriana Esteves pode tocar vários instrumentos. A personagem começou como uma mulher sofredora, com um aneurisma na cabeça. Ali, Thelma poderia mudar o nome para Helena e estaria em algumas novelas de Manoel Carlos como mocinha. O personagem foi se mostrando como o sol que sai detrás da montanha e quando se vê já tomou conta da praia. 

A dona do restaurante  Tasca do Passeio mostrou que seus limites éticos eram elásticos quando emprestou a farda do marido morto para que o namorado traficante de armas  fugisse da polícia. Acrescenta-se à paleta de cores da personagem uma paixão cega que a faz capaz de qualquer coisa quando ama. 

A relação obsessiva com Danilo estava presente desde o primeiro capítulo, quando ao saber da doença gravíssima se recusou a contar ao filho. Ali estava a pista para a formação de seu arco dramático. Super protetora, capaz de basear a relação com a pessoa que mais amava em uma mentira. Se mentia sobre a morte, poderia mentir sobre o nascimento. E foi assim que se desenhou a possibilidade de que Danilo não fosse seu filho biológico. Para tais sutilezas do texto, a autora precisava de uma atriz que pudesse dar o tom certo a uma personagem tão difícil. 

Adriana Estevez tem em sia carreira personagens sedutoras. Foi Marina, uma mocinha clássica em Pedra sobre Pedra. Marcou sua história na TV com uma vilã de manual com a Carminha de Avenida Brasil. E Laureta foi uma vilã em O Segundo Sol com o registro muito próximo ao de Carminha e por isso, não será tão lembrada. Mas Thelma não tem na sensualidade a arma de sedução. Ela é recatada. Roupas sóbrias, saias abaixo do joelho, pouca maquiagem. Se Carminha e Laureta eram espalhafatosas, Thelma é simples. Quer agir nas sombras. Por isso, fura as camisinhas para que o filho engravide a namorada. Escondeu a doença e escondeu a adoção, o verbo de Thelma é dissimular, não é seduzir. 

Talvez por isso o romance com Nuno não tenha ido para a frente e o idílio com Durval pareça uma comédia de erros. Durval foi a pessoa com quem Thelma foi mais honesta em toda a trama. E se relacionar com alguém em que os laços  não começaram na sombra seja difícil para a trajetória de Thelma. 

Agora se desenha a virada narrativa de Thelma. Ela cometerá crimes, mentirá mais do que nunca para não perder seu filho. A história de Thelma é trágica. Sua sentença foi anunciada no primeiro capítulo de Amor de Mãe. No entanto durante o percurso da personagem, Adriana Esteves mostra muitas faces de seu repertório. Thelma é um daqueles personagens inesperados, um caminho cheio de esquinas, em que a surpresa e a falta de limites estão à espreita. 

domingo, 1 de março de 2020

Um pouco sobre Amor de Mãe parte 1

De Avenida Brasil para cá a novela que mais me agradou foi Amor de Mãe. No meio teve a excelente Força do Querer e a artística Velho Chico. Estamos acompanhando no horário nobre uma novela que artisticamente tem muito a acrescentar a um produto que tem mais de 60 anos só no Brasil. 

A primeira cena em que Lurdes/Regina Casé está numa entrevista de emprego e faz um resumo de sua história olhando para a câmera já mostrava que a obra procuraria uma associação com o cinema. 

O primeiro capítulo não foi um mero videoclipe. Tudo que se prenunciava seria fundamental para o restante da obra. O roubo de Domenico, o assassinato de Genilson estava tudo ali. A novela já começou “pegando no breu”. 

Por falar em cinema, há muitas cenas em plano-sequência, além de tomadas externas que oxigenam e quebram as “paredes projaquianas”.  Em um capítulo, Thelma/Adriana Esteves conversava animada com Durval/ Enrique Diaz na Mureta da Urca. Há momentos em que Amor de Mãe é um poema visual. 

A trilha sonora é um primor. Quando recordava o amor do passado com Vitoria/ Tais Araujo, Raul/Murilo Benício tinha como trilha sonora a belíssima canção Mistérios, de Joyce Moreno. Em alguns momentos, para embalar uma cena terna ouve-se Acabou o Chorare, dos Novos Baianos. 

A trama de Manuela Dias me conquistou como há muito não acontecia. Regina Casé está irrepreensível. Que atriz! Faz rir e chorar. Adriana Esteves mais uma vez brilha num papel neurótico, obsessivo que agora vai descambar para a psicopatia. Taís Araújo se mostra um atriz amadurecida, mesmo sendo no trio de protagonistas a que tem a trama menos impactante. 

É preciso ter uma coisa em mente. A novela é o principal produto da indústria cultural brasileira. Há tramas muito frouxas, que estão ali para preencher escaninhos comerciais. A ascensão de Rian/Thiago Martins serve para ações de merchandising, por exemplo. Já, os excelentes Milhem Cortaz é Débora Lamm se equilibram para dar conta de um núcleo cômico obrigatório em qualquer história das 21h. Essa obrigação comercial faz com que algumas partes sejam deixadas de lado. Nos últimos tempos o engajamento da professora Camila/Jessica Ellen com a escola ficou congelada. Óbvio que deveria haver cuidado para não transformar o núcleo num spin-off de Malhação, ma, por exemplo,  o drama de Loyane/Dora Freind uma adolescente que se esforça para estudar mesmo depois de se tornar mãe deveria ter mais destaque, é assunto muito comum na sociedade brasileira. 

Quase comento a injustiça de não citar o Álvaro encarnado por Irandhir Santos que rouba quase todas as cenas em que está.  O ator ainda conseguiu junto com Estela/Letícia Lima transformar sua careca em um objeto fálico. 

Mesmo com o Rosário de qualidades desfiado ao longo deste texto, Amor de Mãe claudica na audiência. Assusta-me que tramas artisticamente mais fracas como as de A Dona do Pedaço e do Outro Lado da Vida sejam sucesso de público. 

Mas se você é do time das séries dos serviços de streaming dê uma chance à Amor de Mãe, produto audiovisual de primeira. 

Rio, eu te amo

Hoje o Rio completa 455 anos. E todo dia primeiro de março gosto de lembrar do ano de 1991. Eu ainda não tinha feito 20 anos e apareceu a oportunidade de assistir a ninguém menos do que Tom Jobim. 

O show foi na praia do Arpoador, um presente para o Rio e para os cariocas, numa época em que o prefeito se chamava Marcello, mas gostava do Rio. 

Bem, foi um show histórico e lotado. Na hora em que o maestro apresentava uma de suas obras mais icônicas “samba do Avião” se deu um daqueles momentos que unem vida e poesia. Quando cantava o verso “dentro de mais um minuto estaremos no Galeão” passou acima de nós um avião de carreira em direção aos aeroportos. 

O público foi ao delírio com efeito especial improvisado. Não sei se a aeronave pousou no Santos Dumont ou no Internacional, o que importa é que foi inesquecível para mim e para todos que ficaram com os pés sujos de areia e a alma cheia de sonhos e sons. 

Foi há 29 anos. Hoje em dia me arrepio com a possibilidade de ficar horas em pé sem poder descansar as pernas e as costas em eventos semelhantes. Ah, continuo não gostando de voar, mas de lá para cá, até subir em helicóptero para trabalhar já tive que fazer.