sábado, 27 de julho de 2019

Meu pai e a estrada de luz no céu de Teresópolis

Estava no retão de Teresópolis em direção à saída da cidade. Os termômetros fora do carro marcavam 8 graus. Acabara de sair de uma festa julina em que revi pessoas queridas. O frio era tal, que ao falar, saía fumaça de minha boca. 

Era quase meia-noite. Olhei para os postes e de repente vi uma estrada iluminada que parecia um caminho celeste. Lembrei de meu pai. E a lembrança veio por causa da data. Como disse, era quase meia-noite e quando o relógio marcasse a mudança de dia, estaria  marcado também o vigésimo segundo aniversário da morte de meu pai. 

 Não foi uma construção de mau gosto. Juntei aniversário e morte na mesma frase para desafiar a semântica. Desde que meu pai se foi, desafio a dor. Desafiar a semântica é apenas mais uma coisa a qual me proponho enfrentar. 

Alguns dias antes tinha comentado com minha mulher que sonhara com meu pai. Acordei preocupado com algo que deveria resolver com ele. No entanto, não há nada a resolver com ele neste plano. Preciso apenas solucionar a saudade e a ilusão que ela causa em alguns momentos. 

Em um dos 450 textos deste blog devo ter dito que não consegui me despedir de meu pai. Estava fazendo uma reportagem, o carro da rádio me levou até em casa e quando cheguei, meu pai já tinha partido, logo, não houve despedida. 

Naquela mesma noite sonhei com ele. Meu pai aparecia sorrindo, eu tomei um susto, tentei entabular uma conversa , disse: “ah, você não morreu, está apenas dormindo”, mas no sonho, meu pai apenas sorria. 

Aliás, não converso com meu pai em sonho. Tenho sempre algo a lhe contar, mas sempre acordo antes de ter qualquer diálogo com ele. Psicólogos de plantão dirão que tenho o sonho recorrente porque não estava lá na hora da partida dele. 

Meu pai morreu no meio do ano. No mesmo 1997, ganhei de um chefe no fim do ano uma agenda para 98. É, antes de haver bloco de notas em celulares, ou aplicativos e redes sociais para informar compromissos e aniversários, havia uma agenda de papel.  Voltando ao presente, quando o abri, o marcador de páginas estava em 28 de julho. Eram 365 dias para ela marcar, mas estava justamente parada no dia da morte de meu pai. Entendi a coincidência como mais uma forma que meu pai arrumara para se despedir de mim. 




Pode realmente ser tudo uma grande coincidência. Deve até existir alguma fórmula matemática para definir as probabilidades de uma agenda fechada marcar o dia 28 de julho, o 209º dia do ano (210° em anos bissextos), mas eu prefiro acreditar que meu pai vai deixando pequenas pistas para ir se despedindo de mim. 

Por isso, ao olhar o desenho da iluminação dos postes na noite de Teresópolis, como se fosse uma estrada de luz a ser trilhada no céu, preferi acreditar que era meu pai acenando novamente para mim. 

Mas sempre haverá o cético, que dirá que postes são postes, luzes são luzes e que depois da morte restam duas opções: sete palmos abaixo da terra ou forno a mil graus. Como disse, prefiro acreditar que meu pai vai me dizendo adeus aos poucos, deixando pistas por aí, como fazia quando queria que achasse meus presentes em aniversários e Natais. Pai, te amo. A dor tem 22 anos, mas dor não completa maioridade, ela se mede no silêncio das vozes, na falta do toque e na ausência do abraço protetor. 

domingo, 21 de julho de 2019

Mudança da Rádio Globo

Tinha decidido não escrever mais sobre a Rádio Globo. Há alguns que não entendem o que escrevo. Estou envolvido com rádio desde 1997. Além de trabalhar no veículo, estudo rádio academicamente, então, me sinto perfeitamente apto a opinar. Em 2017, demorei seis meses após sair da rádio para escrever o primeiro texto. Apesar de estar na emissora na época da radical mudança de programação, pouco ou nada tive de participação no projeto. Mas eu estava na empresa e, por isso, algumas pessoas, que mesmo trabalhando lá eram desinformadas, quiseram desqualificar o que escrevi. Para que fique claro, eu entendia e continuo entendendo a necessidade da emissora mudar. Prejuízos grandes e audiência abaixo do esperado pediam alterações de rota. Discordo do que foi ao ar. Na forma, mas não no mérito. Mais uma coisa, os últimos seis meses que passei na Rua do Russel (janeiro-junho de 2017) foram para cuidar da morte da velha emissora e eventualmente ajudar em algo que estava sendo planejado, como executor, não como mentor. Feito esse esclarecimento, decidi escrever sobre o produto que entrou no ar na segunda-feira dia 15 de julho. 

Para começar, a Rádio Globo voltou a ser popular. Isso não é pouca coisa. Depois de dois anos em que a emissora fez uma opção por privilegiar artistas televisivos e seus “celebrismos”, além forçar uma aproximação com TV Globo, chegou a hora de voltar a fazer rádio. Naqueles tempos, números de seguidores nas rede sociais eram mais relevantes do que talento para fazer rádio. 

A nova programação da Rádio Globo merece elogio por não ter a pretensão de inventar a roda. A opção artística foi fazer uma rádio popular jovem. Isso acaba por resgatar um pouco o espírito da velha 98 FM, aquela que o slogan era “É só sucesso”. Talvez, mais do que a 98, a Beat esteja sendo relembrada. A rádio está entregue a radialistas. Você pode questionar se gosta ou não da programação, mas o que está sendo transmitido é uma programação radiofônica. A Globo está investindo pesado em promoção para reforçar o nome e o novo estilo. Vinhetas bem feitas, ágeis, que se comunicam com público que quer atingir. Uma pena que o Pop Bola não tenha continuado. Tem tudo a ver com o público que quer a nova rádio. Num período de controle de custos, é provável que tenha faltado dinheiro para manter a trupe. O Pop Bola está no YouTube e tomara que dentro em breve esteja em outra emissora. 

Como nem tudo é flor, a opção da Rádio Globo foi correr num segmento “engarrafado”. A FM O Dia há mais de 20 anos lidera dentre as emissoras musicais populares. A Mix já está estabelecida. Para mostrar o tamanho do desafio, houve  as tentativas da Fanática e da Rio, mas estas ficaram pouco tempo no ar. 

Faço um destaque para o morning show No Ar, com Zeca Lima e Vanessa Riche. O programa está bem entregue. Aos poucos eles vão encontrar os personagens que cada um vai representar na atração. Gostei do slogan “A rádio que vibra com você”. Mostra que a rádio “orelha” ficou para trás. 

Acredito que marcas têm DNA. Nesse sentido, para quebrar qualquer comparação com o passado, a emissora deveria ter mudado de nome. Se chamar Globo é enorme para o bem e para o mal. O desafio será atrair anunciantes e quebrar a cadeia “genética” da antiga emissora na cabeça das agências e do mercado como um todo. 

A emissora que esteve no ar entre julho de  2017 e junho de 2019 não teve apenas erros. Carolina Morand no Café das 6, Otaviano Costa, Fernanda Gentil, Vanessa Riche e Marcos Veras eram ótimos.

Uma coisa é evidente: a Rádio Globo que cresci ouvindo, responsável pela minha formação pessoal e profissional não existe mais. A emissora não pertence mais ao segmento talk, agora ela é musical. Não adianta brigar contra isso. Aquela Rádio Globo está espalhada por aí, com Antônio Carlos e Alexandre Ferreira, na Tupi, com Roberto Canazio na Paradiso, com David Rangel em Friburgo, por exemplo. Ah, claro, na lembrança dos ouvintes. 

Se o novo projeto vai dar certo, trazendo faturamento e audiência, só o tempo dirá. 

sexta-feira, 19 de julho de 2019

Quincy Jones, os picos e os vales







Aprenda a viver nos vales, pois nos picos a vida ajuda naturalmente. O pensamento é do pianista Count Basie, um dos expoentes do Jazz americano. Ela está no maravilhoso documentário Quincy, sobre o gênio Quincy Jones. 

Jones pode ser um resumo da música americana da segunda metade do século passado até agora. Só para se ter uma ideia, ele tocou com Count Basie, Dizzy Gillespie, Dinah Washington, Ella Fitgerald, Sarah Vaughan, Ray Charles... Ah, ele foi arranjador de um tal de Frank Sinatra e produtor de um outro cara lá chamado Michael Jackson. Bom, com MJ ele produziu “apenas” Off The Wall e Thriller entre outros. 

Então, não perca a oportunidade de ver o documentário no Netflix. Mas gostaria de voltar à frase que abre esse texto, aquela sobre a necessidade de aprender a viver nos vales. Acho que essa é melhor lição que a gente pode aprender. É pedagógico aprender que as falhas existem e que a má fase é algo para temperar a boa fase. 

Você já pensou no seu placar de vales e picos. Realisticamente, o placar deve ser apertado. Eu diria que salvo algum problema emocional sério, o resultado provável é um empate. Você nasce, um ponto para o time dos picos, você morre, um ponto para o time dos vales. E a vida vai nos ensinando que para cada nascimento há consequentemente uma morte. Nem que depois, algumas dessas mortes sejam revertidas. 

O adolescente mata a criança. O adulto mata o adolescente e o velho, acaba por resgatar a criança. Só que o velho vai morrer. Logo, além do movimento de onda com vales e picos, a vida também é circular. 

E como conseguir desenhar um diagrama que represente a trajetória da vida? Talvez o traço surrealista de Salvador Dali, ou o rabisco intuitivo de uma criança com o pincel numa aquarela. 

Mas enquanto você segue sua trajetória de picos e vales, ouça Frank Sinatra cantando Flyng To The Moon com o piano de Count Basie e arranjos de Quincy Jones. 

terça-feira, 16 de julho de 2019

Para meu amigo Fausto, que é poeta, e para todos os meus poetas amigos

Tenho inveja dos poetas.  Da concisão e da precisão. De conseguir tanto expressar em poucas palavras. Tenho inveja das rimas ricas, tenho inveja das rimas pobres. 

Tenho inveja de quem faz sonetos, de quem entende os decassílabos. As poesias são canções em que a melodia está implícita, audível apenas na alma. E aí, chamo atenção para outra inveja. 

Tenho inveja dos compositores. De quem toca violão, guitarra, piano, bateria, saxofone e berimbau. 

Tenho inveja de quem emula o som das ondas quebrando na areia, do bater de asas e do canto dos pássaros. De quem usa o vento como matéria prima de um solfejo que vai virar melodia. A música é um poema em que as palavras nascem do atrito do dedo numa corda de aço. 

Minha maior inveja é do poeta compositor. Tenho inveja de quem usa o violão para escrever e a caneta para tocar. Acho que esses caras são os que estão mais perto do divino, mesmo que para eles esse divino seja apenas o mais humano de nós. 

Bafo-bafo no ponto de ônibus

Um menino de no máximo 10 anos estava sentado no banco do ponto de ônibus. As mãos estavam espalmadas para baixo. Minha impressão se confirmou, ele estava praticando bafo-bafo. Estiquei os olhos para saber quais eram as figurinhas. Apesar de ter havido uma Copa do Mundo, não vi a febre dos álbuns que aconteceu na Copa masculina. Olhei com cautela. Não queria assustar o menino. Afinal, o que um estranho adulto
Poderia conversar com ele aleatoriamente num ponto de ônibus. 

Pegamos o mesmo ônibus, por sinal. E ele brincava com aquele bolinho de figurinhas. Num momento ele simulava bafo-bafo. No outro ele parecia o croupier de um cassino a distribuir as cartas para uma rodada de poker. Mas as figurinhas pareciam abrir inúmeras possibilidades para aquele garoto. 

Como já escrevi, o menino tinha uns 10 anos e estava com uniforme de um escola pública. Chamou minha atenção o fato dele não estar com um celular. Em suas mãos estavam as figurinhas e com elas, ele brincava. 

Lembrei de mim com o mesmo uniforme há mais de 30 anos. Em vez de figurinhas simula Mn do um cassino eu fingia que era de uma família de feiticeiros. O meu poder era fazer com que os sinais de trânsito abrissem. Aprendi isso com minha irmã Lau e passei a praticar sozinho. 

Também apostava corridas com estranhos na rua. Só que havia um detalhe: eles não sabiam que estavam competindo comigo. Não computei, mas devo ter vencido centenas de corridas. Talvez tenha estabelecido algum recorde mundial de corridas secretas com adversários inconscientes. 

Enquanto viajava no meu passado, o garoto continuava a brincar com suas figurinhas. Algumas delas caíram no chão numa freada um pouco mais forte do ônibus. Essa foi a senha para que ele as recolhesse e guardasse na mochila. 

Um pouco antes do meu ponto o menino saltou. Reparei que ele estava com uma chuteira. O calçado estava meio sujo, com sinais acentuados de uso. Deduzi então que além das figurinhas, o menino se aventura a em campos de terra para bater uma bola. 

Ele saiu do ônibus e foi ficando para trás. O perdi de vista. Com reflexo do sol no vidro do ônibus me vi refletido. Mais velho, gordo e com roupas que não pareciam  o uniforme da escola municipal. Percebi que  perdi de vista o menino que fui. No entanto, ainda lembro de angústias e aflições. Afinal sou mais próximo daquele menino do que a casca pode supor. Mas ele tem uma grande vantagem: a perspectiva de uma estrada longeva. Que ele vença essa estrada e que nunca deixe para trás as figurinhas e o bafo-bafo. 

segunda-feira, 15 de julho de 2019

Djokovic, Federer, Nadal e as reformas

Novak Djokovic e Roger Federer fizeram uma partida memorável na final do Torneio de Wimbledon. O sérvio ganhou por 3 a 2, com a última parcial sendo vencida pelo inacreditável placar de 13 a 12. Foi épico! As quase 5 horas de jogo entraram para a história como os duelos de Borg e McEnroe, Becker e Lendl e Agassi e Sampras. 

O que diferencia Djokovic e Federer, e aí é obrigatório incluir Rafael Nadal é a longevidade da supremacia. Há 15 anos os três dominam o circuito levando a esmagadora maioria dos torneios de Grand Slam (Austrália, França, Inglaterra e Estados Unidos). 

Isso se deve à incrível qualidade técnica que eles carregam, aliada a uma enorme melhora na preparação física dos atletas de alta performance. Não há sinais de que o reinado dos três possa acabar pelos próximos três anos, pelo menos. 

Enquanto eles estiverem bem, vão continuar jogando. As premiações são milionárias. Logo, eles devem aproveitar para ganhar o máximo financeiramente e acumular as realizações esportivas. 

Isso pode trazer algum problema para o tênis? A olho nu, parece difícil. Todos celebram a oportunidade de ver Federer, Nadal e Djokovic em ação ao mesmo tempo. Mas e a necessária renovação do esporte? Como fica a formação de novos ídolos? Todo esse processo fica paralisado, pois os holofotes estão nos três mega-astros. 

Agora peço licença para jogar o foco na Reforma da Previdência aprovada na Câmara dos Deputados. O texto vencedor eleva a idade mínima para à aposentadoria  das mulheres para 62 anos e a dos homens para 65. 

Desta forma, os trabalhadores, teoricamente, vão ficar mais tempo nas empresas. Como as vagas de trabalho não se abrirão magicamente, os jovens que saem das universidades não vão ter onde trabalhar, pois suas vagas ainda estarão preenchidas por aqueles mais velhos que se aposentarão mais tarde. 

Mas calma, isso acontece teoricamente. Pois, esse cidadão ou cidadã dificilmente chegará aos 65 ou 62 anos empregado,, já que aos 50, ele já terá sido dispensado. O de 20, ainda inexperiente, não será necessariamente o “tomador” desta vaga. 

A Reforma da Previdência tão vangloriada se torna cruel ao não facilitar a entrada do jovem no mercado porque não há lugar para eles. Aliada à Reforma Trabalhista do Governo Temer, faz com que os funcionários mais velhos, e geralmente mais “caros” sejam dispensados. 

O que fizeram as duas reformas? Ampliaram o que se chama na economia de “exército de mão de obra de reserva”. Quem ganha com a precariedade das relações de trabalho? Certamente não é você que trabalha mais de 5 meses por ano para pagar impostos. 

Federer, Nadal e Djokovic não têm nada com isso. Seus contratos e premiações são milionários. Os outros tenistas ficam com as migalhas, que no caso do tênis são lautas refeições. Os deputados que aprovaram as mudanças também não vão ser muito atingidos. Procurem saber como são seus regimes de aposentadoria. Os três tenistas ralaram muito para conseguir suas glórias. Mas você, pode continuar a ralar bastante, pois com essa reforma, a glória a ser encontrada é uma lata de leite ou uma estação do metrô do Rio. 

sábado, 13 de julho de 2019

A bailarina e os pés machucados




Minha bailarina passou a semana com a unha machucada. E os pés das bailarinas são o que há de mais delicado em seus corpos. Para piorar, o machucado era no dedão. E ficar na “ponta” com o dedão arrebentado é sobre-humano. Por muito menos já matei aulas na academia. 

No dia anterior à apresentação tinha ensaio. Repetindo o discurso que provavelmente minha mãe faria a chamei para uma conversa: “você precisa se preservar. Não ensaie na “ponta”. Você precisa se poupar para o espetáculo”. Recebi de volta uma resposta mal-criada: “Não tem como, é o último dia antes da dança, tenho que passar na “ponta” de qualquer jeito”. 

Para quem não está acostumado, passar na “ponta” é literalmente dançar na ponta dos pés. As bailarinas compram sapatilhas que na ponta tem uma proteção que as permite ficar naquela posição linda, desafiadora e dolorosa. Colocar a ponta é um ritual de passagem para quem dança. No caso da minha bailarina, a professora foi junto, escolheu a sapatilha, a gente tirou foto, a professora chorou, o pai chorou, enfim, um melodrama ao som de Tchaikovsky. 

Chegamos ao dia da apresentação. Eis que na ribalta olho para a bailarina. Sei que ela está com o dedão estuporado. Mas quando ela sobe na ponta, o faz graciosamente. Ao vivo e nas fotos, é possível vê-la sorrindo. A olho nu, não há dor. Só conhecendo a alma da bailarina é possível detectar que ela está sentindo aquela dor. Mas o disfarce estava tão perfeito que me fez duvidar que ela estivesse sofrendo. Quando a bailarina desceu do palco, perguntei: “seu dedão melhorou”? A resposta foi curta: “nada, doeu pra cacete”. 

E lá se foi a bailarina para mais uma apresentação. Ela disfarçava a dor com um sorriso pleno e eu com orgulho pleno da bailarina. E a bailarina me ensinou a lição de que algo sempre está doendo. Tem hora em que dá para sentir a dor e parar, mas a vida é muito exigente e nesses momentos o jeito é sorrir e deixar a dor disfarçada. Pois a música pode passar e a bailarina perder o passo. Resta-me concluir e esperar que nossas dores sejam suportáveis, já que são inevitáveis. 

segunda-feira, 8 de julho de 2019

A pálida lembrança do que já foi o Brasil

Creso Soares Júnior &!Alexandre Caroli

A foto de Jair Bolsonaro agarrando a taça da Copa América provocou uma coisa positiva neste blog. Pela primeira vez será escrito um texto a quatro mãos. É a união de um rubro-negro e de um vascaíno falando de um futebol que está nos rastros da memória. E que só poderá ser resgatado por um texto, já que máquina do tempo só existe em ficção. 

Setenta mil almas estavam no Maracanã na final da Copa América. No entanto, havia muitos “grã-finos com nariz de defunto”, parafraseando Nelson Rodrigues, e nenhum “geraldino”. Afinal, o futebol S.A. expulsou os geraldinos, os chinelos velhos e camisas puídas. O Maracanã de hoje é da “modinha”. As arquibancadas são a grande pré de uma night em que depois jogadores e muitos dos frequentadores  vão se encontrar. Os ídolos passam por uma dessacralização. As redes sociais os expuseram demais, mas isso é outra discussão. 

O preço dos ingressos tirou uma das imagens mais características do futebol carioca: a porta do trem abrindo e o povo partindo em desabalada carreira na direção do Maior do Mundo. Hoje se chega ao Maracanã de Uber, taxi e Metrô. Sem querer fazer um tratado de sociologia, pois nos falta o saber acadêmico para tal, mas um dos efeitos práticos foi a reação da plateia aos 35 do segundo tempo. O time brasileiro com um a menos em campo, o Peru tentando uma reação e o repórter da TV Globo constatou  que a torcida estava em silêncio. 

Agora não tem nem Maior do Mundo, não tem geraldino, mas tem um presidente papagaio de pirata, que se mete na competição esportiva. A cena desperta em quem tem memória um certo ar de “Pra sempre Brasil”.  A lembrança provocou arrepios de um passado que não deixa saudades nos autores deste texto. 

O futebol que está nos rastros da memória começa dentro do campo. Apesar de ter ocorrido uma evolução desde a estreia até o final da Copa América, o desempenho da seleção brasileira está muito longe do que se espera. Com ou sem crise de geração, o fato é que nossos melhores jogadores atuam em grandes times da Europa, mas, quando se reúnem, não conseguem formar um time que apresente um futebol com mais qualidade. O "x" da questão é a filosofia. Tite levou para a seleção uma forma de jogar que era boa para o Corinthians, mas não para um time com os melhores atletas brasileiros: excesso de cautela; muita bola parada; falta de imaginação; time estático e sem troca de posições; etc etc etc. O Brasil conseguiu flertar com o perigo jogando contra uma seleção peruana fraquíssima. A vitória só se confirmou em um pênalti maluco inventado pelo árbitro - que já havia errado no pênalti a favor do Peru. É pouco. Para a seleção brasileira, é muito pouco.

Porém, a falta de empatia com a seleção vai muito além das quatro linhas. O último jogo no Maracanã antes da final contra o Peru foi a vitória contra a Espanha na decisão da Copa das Confederações em 2013. Seis anos. É claro que Olimpíada não conta. Uma Copa do Mundo foi disputada no país sem um jogo do Brasil no Maracanã. E não há traço regionalista neste texto. É uma constatação: durante o apogeu do escrete canarinho Brasil E Maracanã eram indissociáveis. O peso do estádio era tamanho que o Santos de Pelé, um time paulista,  decidiu Mundial no estádio. . 

Também é impossível ignorar que a CBF é uma entidade marcada pela corrupção. Rica, nada faz para de fato melhorar a estrutura do futebol brasileiro. Se preocupa apenas em "vender" a seleção pelo mundo. O resto que se dane, como, por exemplo, o futebol feminino. Além disso, é difícil ter paciência com a postura de alguns jogadores. Depois do choro do capitão Thiago Silva (um cracaço) em 2014, e do choro e do cai-cai de Neymar em 2018, na final contra o Peru houve o chilique de Gabriel Jesus. Mesmo expulso injustamente, não dá para sair de campo esperneando daquele jeito. Pelo menos pediu desculpas.

O geraldino faz falta porque faz falta o Maior do Mundo. O empate em 2 a 2 entre Vasco e Fluminense pelo Brasileiro de 2010, com mais de 80 mil pessoas, foi o último jogo do Maracanã em sua essência: as duas torcidas em peso, faixas, bandeiras, bandeirões, alma. https://www.youtube.com/watch?v=DJEei8F0EJk  Depois, vieram a destruição e a construção desta insuportável arena padrão FIFA. Um espaço proibido para os geraldinos e não apenas na Copa América. Por fim, diante da cena patética do presidente vaiado agarrado à taça da Copa América - uma tentativa de apropriação para deixar com inveja os generais da ditadura - impossível não lamentar a inexistência de alguém com a camisa amarela com a coragem de uma Megan Rapinoe, para dissipar o irrespirável ar de Pra Frente Brasil.

domingo, 7 de julho de 2019

Minhas alunas e a Copa do Mundo

Há 17 anos tenho contato direto com jovens. Se no começo tinha a idade relativamente próxima, hoje tenho mais do que o dobro do tempo de vida deles. E nesse caminho minha sala de aula se transformou. Ela ficou mais horizontal. Diria que se fosse um carro de fórmula 1, ela teria ficado mais arisca e desafiadora. 

Há mais de 10 anos deixo a escolha do tema do trabalho final por conta deles. Digo que o mercado de trabalho já vai lhes impor pautas, então quero que eles tenham o prazer de escolher sobre o que querem falar. 

Diria que já presenciei varias ondas de interesse. Com o dólar relativamente baixo, veio a onda de dicas para mochilão e intercâmbios. Teve também a onda das matérias sobre ONGs e iniciativas empreendedoras. 

Estou vivendo a onda do empoderamento das minorias. E neste semestre , especificamente, a pauta escolhida pela grande maioria foi a Copa do Mundo Feminina. Mesmo quem não falou exclusivamente dela, em algum momento tocou no assunto. E algo ainda mais diferente, grupos formados em sua totalidade por mulheres falou de Marta, Formiga, Cristiane e Cia. 

A pauta não era a esportiva de sempre, como táticas, preferências por algum jogador ou time. O que predominou foi a descoberta do futebol feminino em si. 

E por causa disso, as discussões ficaram muito mais profundas do que costumam ser os debates futebolísticos. E Marta emerge como a grande heroína dessa primavera do futebol feminino. A decisão de lutar pela igualdade na remuneração, seu batom e suas atitudes afirmativas foram alvo de discussões acaloradas. 

Curiosamente, a maior jogadora de futebol feminino de todos os tempos ganhou notoriedade nas novas gerações num momento em que estava distante de seu auge físico e técnico. Comparo a Copa de Marta em 2019 com a de Zico, em 1986, no México. O 10 e a 10 chegaram ao palco principal do futebol com problemas físicos e não puderam render tudo o que se esperava deles. 

E dentre as discussões levantadas, a que mais me despertou interesse foi a reivindicação de que narradoras, comentaristas mulheres e repórteres mulheres atuem nos jogos da seleção feminina. 

O futebol e, consequentemente, as transmissões esportivas, sempre foram dominadas pelos homens. No rádio do Rio, por exemplo, lembro das queridas Carla Matera e Camila Carelli cobrindo clubes. Na televisão, as mulheres conseguiram quebrar essa barreira da reportagem esportiva antes. Com medo de cometer injustiças e ser traído pela memória, mas me lembro da Izabela Scalabrini como precursora na TV Globo nos anos 1980. 

Comentaristas na TV, a primeira que me lembro é a Soninha, na ESPN no final dos anos 1990. A ex-jogadora Juliana Cabral também foi comentarista na Rádio Globo São Paulo. Então, é ótimo que Ana Thais Matos, Nádia Mauad e Milene Domingues estejam deixando as transmissões mais plurais. 

Já ouvi gente dizendo que não deve haver distinção de sexo e que o melhor narrador deve transmitir os jogos. Gostaria de estabelecer um paralelo com outra situação. Sempre me perguntam aquela falsa dicotomia: “é melhor dar o peixe, ou ensinar a pescar”?  Minha resposta não muda, em tese, no mundo ideal, é melhor ensinar a pescar. No entanto, a desigualdade é tão grande, que se a gente não der o peixe agora, o cara não vai estar vivo para aprender a pescar. 

Logo, no mundo ideal, com todo mundo partindo em igualdade de condições a pessoa com um desempenho profissional supostamente melhor deveria transmitir os jogos mais importantes. No entanto, a desigualdade de gênero ainda é tão grande, que segmentar as transmissões esportivas de futebol feminino com mulheres pode ser o melhor caminho para formar novas narradoras e comentaristas. 

É bom ressaltar que em outros esportes como vôlei e basquete as mulheres já ocupam postos de comentaristas, mas o comando das transmissões fica com os homens. Estamos em transformação e nenhuma mudança deixa de ser dolorosa, mesmo aquelas que são pretensamente para melhor. 

Apesar de acreditar que essa segmentação é importante no momento atual, não descarto que isso em vez de integrar o futebol feminino, o deixe como um produto exclusivamente feminino. Talvez valha a pena radicalizar agora e integrar quando for possível. Não tenho a resposta. A vida é inexata. Na verdade, nem tudo na vida é inexato. Dentre as coisas exatas da vida está o violão de João Gilberto. 

sábado, 6 de julho de 2019

João, o parnasiano da música


Sou um daqueles que já cometeram a blasfêmia de dizer que João Gilberto era chato. Sim, a voz anasalada e a emissão suave eram para mim sonolentas. Com Tom Jobim a identificação foi imediata, até porque, uma das músicas que me lembro da infância é Águas de Março. Vinicius de Moraes me veio por meio da Arca de Noé. Lembro de ouvir meu disco na vitrolinha laranja e decorar as canções. 

Com João Gilberto não teve jeito. Não tive a paixão arrebatadora desde o início. Devo minha conversão à religião joãogilbertiniana ao cineasta Gui Gonçalves. Talvez o próprio Gui não saiba disso ou mesmo não se lembre da ocasião. Era janeiro de1995. Pouco mais de um mês antes, Tom Jobim havia morrido e deixado um buraco do tamanho do mundo na música. Eu fazia um frila na produção de um vídeo institucional. O Gui era o diretor e após as gravações a equipe saía para jantar, planejar o dia seguinte e o principal, pelo menos para mim, conversar sobre todos os assuntos. Numa dessas resenhas (para usar um termo da moda), eu proferi a frase “João Gilberto é chato”. Foi então que o Gui olhou para mim com compaixão e traduziu para aquele jovem de 23 anos o que representava João Gilberto. 

Gui foi didático, me explicou a cadência do violão do João Gilberto e como em algum lugar a voz e o instrumento se encontravam na alquimia do intérprete. Justiça seja feita ao meu irmão David. Ele já tinha tentado me explicar isso, mas sabe como é, santo de casa não faz milagre. Então, há um quarto de século sou convertido. 

Entendi que João Gilberto é gênio. Tudo que eu falar dele já foi dito com propriedade por alguém que entende mais do que eu de bossa nova, harmonia, melodia, violão e banquinho. A música dele é um estado de espírito. Ele foi parnasiano. Procurou a excelência e a precisão no canto e na destreza com o instrumento. Mostrou que menos é mais e sim, foi arrebatador, mas sem fazer alarde e sem histrionismo. Deu ao violão status de orquestra. Isso é para poucos, na verdade, é para um só.

Já andei muito pela noite, conheci pessoas interessantes, famosas e excêntricas. Mas lamento nunca ter encontrado João Gilberto. Já ouvi muitas lendas sobre ele. Sua excentricidade circula nas rodas musicais. Aliás, aos gênios é permitida a excentricidade

João se tornava “co-autor” de todas as musicas que interpretava. Impossível dissociar dele Desafinado e Chega de Saudade. Mas a minha preferida é Caminhos Cruzados, que encerra essa singela e pequena homenagem a João que inspirou meus ídolos, Caetano. Veloso, Gal Costa, Gilberto Gil, Chico Buarque, Novos Baianos e tantos outros. 


segunda-feira, 1 de julho de 2019

Elis e as velhas roupas do passado

Elis Regina foi hostilizada por parte de seu público por ter cantado na Olimpíada do Exército. A cantora fez uma declaração criticando a ditadura durante uma turnê na Europa. Na volta, foi interrogada e para escapar da perseguição, foi obrigada a cantar no evento militar. 

O cartunista Henfil, um dos grandes nomes do Pasquim, ficou indignado com a cantora. Ele a enterrou no Cemitério dos Mortos Vivos, lugar para onde ele mandava todas as figuras que de alguma forma aderiam à ditadura. 

Henfil era irmão de Herbert de Souza, o Betinho, um dos brasileiros que tiveram que partir num “rabo de foguete” por conta da ditadura que alguns querem revisar e chamar de “movimento”. 

Outros episódios redimiram a cantora. Ela foi solidária à Rita Lee, quando a Rainha do Rock, foi presa por porte de drogas. Além disso, Elis cantou o “hino da anistia”, a belíssima e icônica O Bêbado e a Equilibrista, de João Bosco e Aldir Blanc. 

Mais ou menos 30 anos depois do episódio da Olimpíada do Exército, o assunto ainda era mal digerido. Em 2002, fiz um especial sobre os 20 anos da morte da cantora. Ao perguntar a um dos entrevistados o que aquilo significou, o jornalista se irritou por ter que responder. Na construção do texto eu até dizia que a cantora fora obrigada, mas o entrevistado se mostrou desconfortável por ter ouvido a pergunta. Deixei na edição a resposta um pouco malcriada da fonte. 

O episódio foi tratado, ainda bem. Isso me faz lembrar da confusão envolvendo Wilson Simonal e seu contador. A confusão fez com que o melhor cantor do país caísse no ostracismo. O excelente documentário Simonal - Ninguém Sabe o Duro que Dei relata o apogeu e a queda do Rei da Pilantragem. 

Resolvi falar do passado por causa do bom filme Elis. Nele ouvi a música Velha Roupa Colorida, de Belchior. Na canção tem um trecho que me chamou atenção: “No presente, a mente, o corpo é diferente. E o passado é uma roupa que não nos serve mais”. Ouso discordar do Belchior. 

O passado é uma roupa que deve nos servir de molde, principalmente, aquelas que “não caíram bem”. Desprezar o passado, ou esquecê-lo, pode fazer com que a gente erre “rude” (expressão que ouvi num vídeo do Porta dos Fundos e adorei). 

Entendo o espírito da época da música, e de fato, ficar preso ao passado impede a caminhada. É preciso revisitar o que deu errado no passado para não repetir o erro. É necessário olhar o que deu certo no passado para inspirar um futuro melhor. 

Pois a vida precisa de construção de memória. As pedras não vão sair todas do sapato, nos resta, de tempos em tempos, adequar os pés e a postura para poder andar, suportando as dores e até rindo, quando possível.