sábado, 26 de janeiro de 2019

Os filhos e as pipas

Quando você se cansar de pisar minhas  pegadas, olhe para a margem do caminho, quem sabe o pé muda de forma e crescem asas em você. 

E se crescerem asas em você, quem sabe a dor nas costas diminua, já que a falta de contato com o chão deixa a pressão sobre a lombar mais leve. 

E se voando esquecer meu rosto, tente ao menos lembrar da minha voz, para que sirva de guia se o acaso lhe arremessar dentro de uma nuvem.  

Queria ter você como uma pipa, para então  ser seu condutor. Na esperança vã de impedir que algum aventureiro corte a linha. 

Nem mesmo o cerol mais forte é páreo para as lâminas da vida. O tempo é afiado na distância. A liberdade vem em forma de ampulheta. Correndo areia e deixando mais forte um sentimento de total independência. 

A olho nu não reconheço mais os traços. Mas de relance me assaltam os tempos de quando os seus olhos eram apenas meus. Aquelas horas em que me curvava só para dar-lhe a mão e garantir o seu andar. 

As minhas costas já não são as mesmas. Quisera eu também poder voar e reduzir as dores na coluna e com disfarces lhe acompanhar. 

Então a ilusão de mira e alvo se desfaz no primeiro ato da inevitável autonomia. Em vez de pipa, segue como pássaro. Buscando a rota do próprio voar. Fazendo no outono a migração para estações que nem ouvi falar. Num voo solo em que eu só vou torcer. 


Tentando achar o ritmo do texto, que num arroubo de vil pretensão, tenta a ponte entre prosa e verso. A poesia está nas entrelinhas com pouca rima, com muita vida. 

quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

Não comemore Hoje é o Jean Wyllys, amanhã pode ser você

O nome do cargo é presidente da República. Logo, em última instância, o cidadão eleito para ocupar é o responsável pela segurança e o bem estar de quem o elegeu e de quem não votou nele. Por isso é república, se fosse para ser particular, ele deveria presidir um clube, ou ser síndico de um condomínio. 

Os tuítes de Jair Bolsonaro comemorando o auto-exílio do deputado Jean Wyllys envergonham o cargo para o qual ele foi eleito. Ele é o presidente do país, logo, responsável pela segurança e bem estar do deputado da oposição. 

Bolsonaro emprega a filosofia de extermínio dos adversários. Já demonstrou isso quando afirmou que iria “metralhar a petralhada”, ou ainda quando falou sobre a vontade que os opositores deixassem o país. 

Não se pode acusar o presidente eleito de incoerência. Afinal, ele deu todos os sinais de que faria isso. Diziam que ele era despreparado, os seis minutos em Davos nos quais não conseguiu aprofundar nada foram uma prova de despreparo e um mico internacional. Com a oportunidade de falar com a mídia do mundo inteiro mostrou o raciocínio estreito de fugir das perguntas. Arrumou um emprego fantasma para o filho. E só sabe Deus como são suas relações com o assessor-tóxico ico Fabricio Queiroz. 

Concorde-se ou não com a agenda política de Jean Wyllys, é estarrecedor que um deputado democraticamente eleito não se sinta seguro de permanecer no país. Ficar e se tornar mártir era uma possibilidade. O assassinato de Marielle Franco, há 10 meses sem solução, mostra o que poderia acontecer com o parlamentar do PSOL. 

Vivemos um tempo de brinde à intolerância. Escrevo este blog, mas o medo começa a pairar em minhas postagens. Lembrei das luvas no porta-luvas que “alguém de unhas negras e tão afiadas esqueceu de por”. 

O “alguém” cinicamente ocupa o cargo mais alto da nação. Um sorriso sádico, imitando com as mãos ter uma pistola pronta a aniquilar os que pensam diferente. 

Em vez de comemorar, o presidente deveria determinar que a polícia federal investigasse os focos de ameaças ao deputado. Pois quando se ameaça um parlamentar eleito, ameaça-se as instituições. As mesmas que o ministro da Justiça garante estarem funcionando. 


O auto-exilio de Jean Wyllys, a laranjada do Queiroz, o decreto atravancando o direito à informação indicam que mergulhamos em um mar de lodo. Que a oposição permaneça tendo direito de ser oposição e não acabe numa casa da morte, ou abatida num latrocínio inexplicado.

terça-feira, 22 de janeiro de 2019

Marielle, a menina da Maré; Robert, o rapaz de Massachusetts

Há 50 anos a sociedade americana tem dúvidas sobre quem assassinou Robert Kennedy. O irmão de John Kennedy foi assassinado em junho de 1968, logo após saber que havia vencido as primárias do Partido Democrata na Califórnia. A festa da vitória acontecia num hotel. Bob fez o discurso de agradecimento e ao sair do púlpito, foi baleado. 

O episódio foi acompanhado em tempo real, apesar deste termo nem ser usado na época. As equipes de TV estavam mobilizadas para as primárias e registraram tudo. Um homem com uma arma na mão foi preso. A conclusão óbvia é que ele havia atirado em Kennedy. 

No entanto, a Polícia de Los Angeles ignorou outras evidências que poderiam abrir algumas hipóteses para a investigação. Um legista afirmou que o tiro foi disparado por alguém que estava a 3 cm do senador. O suspeito, Sihram Sihram estava a um metro de Robert Kennedy. 

Há registros de que a polícia destruiu inúmeras provas nas investigações da morte de Robert Kennedy. O irmão mais novo do presidente morto em 1963 tinha uma plataforma de defesa das minorias. Notadamente dos latinos e dos negros. 

Robert Kennedy incomodava muita gente. Apesar de pertencer a uma das famílias mais ricas dos EUA conseguiu amplo apoio das comunidades mais pobres. Bob era contra a Guerra do Vietnã, o que o afastou do Presidente Lindon Johnson, que sucedeu John Kennedy na Casa Branca. 

O suspeito foi condenado à pena de morte em 1969, mas como o estado da Califórnia aboliu a pena capital em 1972, Sihram foi condenado a ficar em prisão perpétua. 

Até hoje algumas pessoas próximas a Robert Kennedy tentam reabrir o caso, desconfiadas de que houve muita pressa da polícia de Los Angeles para encontrar um culpado. 

Curioso notar que a polícia americana quis agir rapidamente para evitar teorias da conspiração, mas mesmo assim não conseguiu. As suspeitas já duram 50 anos e, provavelmente, nunca acabarão. 

Fico pensando num paralelo das mortes de Robert Kennedy e Marielle Franco. Onde se encontram o rapaz de Massachusetts e a menina da Maré. A pauta de defesa das minorias estava presente na política dos dois. A primeira vista fica difícil fazer uma associação entre os dois crimes. Afinal, estão separados geograficamente, num intervalo de tempo de  50 anos. No entanto, RFK e Marielle tinham uma pauta que incomodava os poderosos. Ele, rico e branco. Ela, pobre e negra. Mesmo com origens tão distintas começaram uma luta por quem não tinha voz nem vez. 

A quem interessava a morte de Robert Kennedy? A quem interessava a morte de Marielle? Essa pergunta óbvia poderia fazer com que as investigações chegassem a resultados inquestionáveis mais rapidamente. Na morte de Robert Kennedy é praticamente impossível que se chegue a alguma conclusão. Mas nas mortes de Marielle e Anderson ainda há chance. Que a polícia daqui faça hoje seu trabalho de forma mais eficaz do que a polícia americana há 50 anos. 

A operação policial para prender o capitão Adriano Magalhães da Nobrega é mais um passo  para que se saiba quem matou a vereadora e seu motorista.  O problema é que tudo parece ser só o começo do desenrolar do novelo. Ainda há muitas pontas para amarrar. 



segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

Precaução: excesso e falta

Olhei para os ocupantes do banco da frente no ônibus que eu viajava. Era um casal que não se conhecia. Ao fixar o olhar mais atentamente vi que o homem era calvo no cocuruto. E a pele da cabeça estava descascando. Percebi que o homem não usou boné ou protetor solar na cabeça. Resultado, a cabeça dele devia estar literalmente ardendo. 

Pensei sobre a necessidade de passar protetor solar na cabeça. Apesar de ser uma coisa óbvia para os calvos, não é um hábito do meu cotidiano por isso, estranhei aquele cocuruto descascando. 

A mulher que estava ao lado do homem carregava um enorme guarda-chuva preto. Vivemos dias de estio no Rio de Janeiro. Aquele guarda-chuva me chamou atenção porque não parecia ter utilidade no clima saariano da cidade neste verão. 

O guarda-chuva era a prova viva de que as intempéries do clima não surpreenderiam aquela mulher. E no meio das minhas divagações pensei que se o cidadão ao lado dela fosse precavido não estaria com a careca descascando. 

Não faço ideia do estado civil dos dois. Mas se eles olhassem para o lado descobririam-se almas complementares. Ela com um guarda-chuva num dia absolutamente ensolarado e ele com o cocuruto descascando. O guarda-chuva dela poderia proteger a careca dele. O objeto seria enfim útil e ele teria a pele protegida. 

Quantas vezes desperdiçamos oportunidades na vida por não estamos ligados para as opções que se apresentam ao nosso redor. A viagem prosseguia. O ônibus parou e a mulher se levantou, pediu licença ao homem e saltou. 

Ela andando pela rua ensolarada com aquele guarda-chuva extemporâneo e ele sentado sozinho com o cocuruto descascando prosseguiu sua viagem. 


Eu saltei pouco depois e interrompi os devaneios. Mas olhando de fora tenho a impressão de ter testemunhado um encontro desperdiçado. Uma comunhão que poderia ter dado certo. 

sexta-feira, 18 de janeiro de 2019

Flávio Bolsonaro e Lutero Vargas

O jornalista Elio Gaspari costuma “psicografar” cartas de personagens históricos para pessoas de hoje em dia. Ele deveria usar suas habilidades do além e falar com Flávio Bolsonaro sobre Lutero Vargas. 

Nascido em 1912, Lutero tinha 18 anos quando o pai chegou ao Palácio do Catete e estava com 42 no fatídico dia 24 de agosto de 1954. Nesse meio tempo, o primogênito de Vargas se formou em Medicina e se tornou deputado federal. 

Na volta do pai ao Catete, se meteu numa encrenca por ter intermediado dinheiro para que Samuel Wainer conseguisse abrir o jornal “Última Hora”. O caso acabou em pizza porque a base parlamentar getulista conseguiu barrar as punições contra o primogênito do presidente. 

Era inimigo declarado de Carlos Lacerda. O jornalista conspirador chamava Lutero de “Filho rico do pai dos pobres”. A hostilidade era tanta que ele foi citado nas investigações sobre o atentado da Rua Toneleros que matou o major Ruben Vaz e precipitou o fim do governo Vargas. Nada foi provado contra Lutero. 

A primeira lição que Flávio deveria tirar é que qualquer uma de suas ações está ligada ao pai. Isso vale para o bem, quando o sobrenome garantiu-lhe expressiva vitória na eleição para o Senado, quanto para o mal, como agora no Queiroz-Gate. 

Ao saber que tinha “telhado de vidro” o primeiro-filho deveria ter se afastado do pai. Ou ao ter em um mês 48 depósitos num total de 96 mil reais, Flávio Bolsonaro achava que não seria investigado? Se pensava assim, das duas uma: ou o senador eleito é de uma ingenuidade atroz, ou acreditava piamente que a nova ordem lhe garantiria a impunidade. O pior é se as investigações mostrarem que o laranjal irrigou a conta do patriarca. Vai ser algo difícil de explicar. 

Bolsonaro deveria estar tocando a agenda das reformas, notadamente a da Previdência, no entanto, terá que agir para minimizar as estripulias de Queiroz/Flávio. Se a ação de Lutero Vargas pra financiar Samuel Wainer foi mais um foco de desgaste para o pai, Flávio Bolsonaro é responsável pela primeira crise seria no governo Bolsonaro. A bandeira anti-corrupção era uma das principais da campanha. Não se esperava que antes do primeiro mês alguém do clã fosse pego com a boca ma botija. 

A entrevista à Record, uma das empresas amigáveis à nova ordem, não será suficiente para encurtar a crise. Pegou mal entrar com a liminar para conseguir o foro especial. Foi o recurso de alguém que tinha algo a esconder. 

Talvez o patriarca tenha que deixar o primogênito pelo caminho para escapar ileso do Queiroz-Gate. Getúlio não jogou o filho aos leões, mas ao final da crise deu cabo a própria vida. E Bolsonaro tem na sala de espera alguém louco por deslizes. O vice-presidente, Hamilton Mourão, já disse que o episódio envolvendo Flávio precisa ser esclarecido. Se Michel Temer esperou seis anos para conspirar contra Dilma Roussef, há dúvidas se o general Mourão terá tanta paciência. 


Jair Bolsonaro não vai sair dessa crise com bravatas e espalhando fake News. Vai ter que ser firme para que a faixa não escape pela cabeça e vá parar no peito do vice-presidente.  

quarta-feira, 16 de janeiro de 2019

Armar as pessoas aumenta o cheiro de enxofre

Ouvi uma história contada pelo meu sogro que me deixou impressionado. Um amigo dele foi pegar a própria pistola e matou a mãe. Uma tragédia da qual a família nunca mais se recuperou. E olha que por motivos profissionais, o homem sabia lidar com armas. 

É matemática. Se aumentamos o número de armas circulando, aumentaremos o número de pessoas mortas e feridas. E a nova ordem quer fazer crer que a partir de agora, esse número de mortes só vai crescer entre os “vilões”. No entanto não há argumento que sustente por 5 minutos esse sofisma. Na minha casa não entrarão armas, o problema é que isso não deixa a mim e a minha família mais seguros. 

Com certo atraso, vi no Netflix o filme Uma Noite de 12 anos. É o relato da prisão de oposicionistas à ditadora uruguaia, que pertenciam ao Tupamaros. Dentre os presos está o homem que iria se tornar presidente do nosso vizinho, José Mojica. 

Se você acha engraçadinho andar com a camiseta do Coronel Ustra, você precisa ver urgentemente o filme. A obra é um exemplo do que pode dar abrir as portas do inferno. 

O cheiro de enxofre só aumenta quando o Governo do Estado censura uma performance artística. Ou quando descobrimos que Olavo de Carvalho espalhou seus tentáculos no Ministério da Educação. 

Queiroz dançando no hospital é a prova de que votar em Bolsonaro por querer algo novo era pouca visão ou desculpa. Uma vergonha o filho senador não explicar o que aconteceu. O mesmo vale para a filha do Queiroz. As aparências indicam que ela era funcionária fantasma. O que fica evidente é que não há como se explicar sem quebrar os pés de barro da santidade do clã bolsonarista. Eles são iguais aos que criticaram durante a campanha. 

A temperatura dos oceanos subiu, o que faz a nova ordem: ameaça sair do acordo do clima e o Ministério do Meio Ambiente suspende convênios com ONGs. Separar o joio do trigo seria a solução responsável sem paralisar os trabalhos. No entanto, a nova ordem continua com sua sanha de cumprir a agenda fundamentalista e rasa. 

Armar a população é desenhar um alvo na testa dos opositores. Problemas na reunião de condomínio com o vizinho chato serão resolvidos na bala. Fechadas no trânsito, também. Ou alguém acredita firmemente na fiscalização para diferenciar “porte” e “posse” de arma. 

O decreto da bala só visa a morte. Armas servem pra matar, não há nada diferente disso. E essa nova ordem com um discurso de valorização da família e da vida vai manchar as mãos com o sangue das mulheres mortas por seu companheiros violentos e dos cidadãos mortos após discussões no trânsito ou na padaria. Que Deus defenda a mim e aos que amo. O Deus que eu acredito mandou o filho expulsar os vendilhões do templo. Aliás, esse filho, entre outras coisas,  impediu o apedrejamento de uma mulher. 


Amar e armar são incompatíveis. Só se assemelham por serem verbos de primeira conjugação. Mas é difícil construir uma frase em que eles não representem ideias contrárias. 

segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

O que Jennifer pode nos ensinar

Se você é da minha geração vai achar difícil compreender o sucesso de Jennifer, a grande febre nas paradas musicais brasileiras dos primeiros 15 dias do ano. A música de Gabriel Diniz conta a história de um flagra virtual que a namorada dá no cidadão. A moça pede explicações. E a resposta é o refrão do momento: “O nome dela é Jennifer, eu encontrei ela no Tinder”. 

A menção ao Tinder deixa a canção  hiper atual. Há frases na música brasileira que a seu tempo tiveram esse impacto de contemporaneidade. Lembro agora de “fotografei você na minha rolleiflex” e de “eu tomo uma Coca-Cola, ela pensa em casamento”. 

Talvez a simples comparação de Jennifer a duas músicas cânones do nosso cancioneiro já seja motivo de pedirem a interdição do meu blog. Mesmo assim vou insistir. Tomar a Coca-Cola, usar uma máquina para fotografar e se relacionar pelo Tinder são aproximações que a obra faz de quem a consome. Com sucesso não se briga, se tenta compreender. 

Voltando ao esforço cognitivo para compreender Jennifer, a letra é simples e direta. No entanto, na era das imagens, a música associada a um clipe bem editado e a perfeita escolha do personagem são  grandes sacadas. Colocar a excelente Mariana Xavier representando a personagem foi um golpe de mestre. 

Depois de viver a Marcelina, filha de dona Herminia no filme Minha Mãe é Uma Peça, Mariana encara a mulher livre e sensual que “faz umas paradas”. Se no filme protagonizado por Paulo Gustavo, a gordura da atriz era lembrada pela mãe para humilhar a personagem, no clipe, ser gorda não a impede de ser sensual. 

Jennifer virou um combate à “gordofobia”. A “outra” pode ser bonita, sexy e gorda. No entanto, para entender a mensagem, não adianta só ouvir a música, tem que ver o clipe. Um legado do nosso tempo é o combate ao rótulo do que pode ser belo. Mariana Xavier é bonita. Jennifer é bonita, “faz umas paradas” e é gorda.  


Então, antes de gritar horrorizado com a pobreza melódica, rítmica ou poética do hit do verão, tente entender o que está por trás. Obviamente, não sei se os autores pensaram nessas coisas todas na hora que estavam fazendo a música. No entanto, depois que se lança a obra ao mundo, ela pode ganhar significados que originalmente aos autores não pensaram. 

sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

O surfista e a conta corrente

Demorei 47 anos, 7 meses e 12 dias para ver uma pessoa entrando de prancha numa agência bancária. Perdão se pareço provinciano ou pouco afeito às modernidades da vida. No entanto, aquele surfista correntista realmente aguçou minha curiosidade. 

Eu estava numa fila na agência. Sim, eu sou aquele cara que vai fisicamente ao banco. E naquele marasmo angustiante que é olhar uma tela e ver se o número que aparece é o da sua senha, entrou no meu campo de visão aquela cena inusitada. 

O homem, entre 35 e 40 anos, se aproximou da porta giratória. Os seguranças da agência olharam com estranheza. Eles autorizaram a entrada. Ele passou e se dirigiu aos caixas eletrônicos. 

Fiquei imaginando o quão urgente eram as ondas que ele iria pegar ou as contas a pagar. Afinal, por qual motivo ele não deixou a prancha em casa para resolver os problemas bancários?

Aquela prancha, num lugar tão opressor como costuma ser uma agência bancária, estava deslocada e me abriu a cabeça para muitos pensamentos. O kkk mais superficial foi: depois que saísse do banco, aquele homem iria ter contato com a natureza enquanto o restante de nós iria cuidar de tarefas mais enfadonhas. 

Ele encostou a inseparável companheira ao lado do caixa eletrônico e fez operação que precisava. Enquanto a máquina “pensava e processava” os comandos que ele disparara, o homem acariciava a prancha como se fosse a cintura da pessoa amada. 

Quantas vezes você se viu como uma peça deslocada num quebra-cabeça. Eu me senti assim diversas vezes. No entanto, aquele surfista nem ligou para os olhares curiosos, críticos e invejosos. Acompanhado por sua prancha, entrou no banco e cuidou da vida. Ele mostrou que, literalmente, paga suas contas e como ninguém tem nada a ver com isso, resolveu seus problemas com a velha amiga prancha. 

Quando acabou, se dirigiu ao segurança, confirmou o endereço da agência bancária e pediu um carro por aplicativo. Quando o veículo chegou, passou pela porta giratória, entrou no carro e sumiu junto com sua prancha. Salvo o caso do homem ser louco, deve ter ido à praia pegar suas ondas com as contas pagas. 

A vida precisa de um pouco de inventividade. Talvez ao entrevistar o surfista sumiriam o mistério e o fascínio da história. Ele teria uma explicação plausível para estar com a prancha no banco. Nesse caso, prefiro ficar com o enredo que eu criei. Um cara que não está nem aí para convenções, que vai ao banco com a prancha e não liga para as opiniões alheias. 


Bom, pode ser que entrar com a prancha na agência bancária seja a coisa mais comum do mundo e eu, que sou um ET, nunca tenha visto. 

quinta-feira, 10 de janeiro de 2019

As garças e os peixes

Todo dia que me ponho a escrever há uma bifurcação. Serei mais lírico ou serei mais crítico? Os dois caminhos são tortuosos. No lirismo a alma se escancara. O contato com sentimentos escondidos liberta as lágrimas. Às vezes, ser lírico num texto é muito doloroso. A alma visita lugares desconfortáveis, lembranças represadas que estão ali como camada de sedimento da sua alma. O movimento sísmico das emoções nem sempre gera acomodações das placas do coração. 

Ser crítico é cáustico. Faz com que você desopile queixas contra as trapalhadas, omissões e escândalos da vida. No entanto, o texto crítico suscita... críticas. A sociedade virou os pelos de uma zebra: ou são pretos ou são brancos. Se no primo do cavalo a mistura cria harmonia, no dia a dia, as opiniões diferentes podem acabar com amizades. Fazer um texto crítico é muito perigoso nesses tempos. 

Então é uma questão de escolha. Lírico ou crítico? Olhei uma imagem numa tarde de verão na Lagoa e pensei em escrever sobre ela. O quadro era assim:

Cinco garças estavam pousadas num  banco de areia na Lagoa Rodrigo de Freitas. Na posição em que estavam, os pássaros pareciam com a imagem bíblica de Pedro andando pelas águas. Tal como o discípulo que se tornou a pedra fundamental da igreja Romana, as garças são pescadoras. E ali, no banco de areia, em meio ao calor infernal do Rio de Janeiro, elas abaixavam a cabeça e pegavam os peixes que lhes garantiriam a refeição. 

O calor estava tão grande, que até elas, dotadas fisiologicamente para aguentar a temperatura, faziam o esforço mínimo para pescar o almoço. É interessante ressaltar que as garças são a definição da elegância. Pescoços longos, até na hora de buscar o alimento, se mantém galhardamente na postura. Eu, por exemplo, provavelmente seria uma garça desajeitada. 

De fora, observando aquele movimento gracioso, não atentei para o fato mais realista que ocorria. Um predador pegava sua presa. Para manter o ciclo alimentar, as garças pegavam os peixes incautos que se aproximavam do banco de areia. Enquanto eu via poesia nas cores da tarde carioca, um peixe nadava e encontrava seu trágico destino. Virava comida da ave. 

O encontro das garças e dos peixes, como tudo na vida, depende de que lado você está. A refeição nunca ficará confortável. Pois no meio da sua rotina, ela pode ser capturada e nunca mais ver a luz do dia. 

Os que defendem as garças dizem que elas devem atacar os peixes, e estes que aprendam a se defender. Afinal, os peixes também estão sendo prestadores de outra espécie e o ciclo segue assim por diante. O predador é sempre presa de alguém. 

Nesse momento empaquei. Não decidi se persistiria  no lirismos do nadar do peixe interrompido pelo oportunismo da garça, ou se começaria um texto sobre o liberalismo econômico das relações entre garças e peixes. Nesse ponto discorreria sobre a utilidade ou não da regulação do mercado. 

A verdade é que a garça sempre vai comer o peixe. E se o peixe almejar outro destino, por exemplo, migrar da Lagoa para o marzão  de Copacabana? Vai ter que dar muita sorte. 


E concluí que minha história das garças e dos peixes seguia híbrida. Garças e peixes são irreconciliáveis. Alguém sempre vai sair perdendo. Há lirismo na crítica, há crítica no lirismo. 

domingo, 6 de janeiro de 2019

Quantos chopes você adiou e não conseguiu mais tomar....

Amigos, ando emotivo. É uma praga quando isso acontece. Choro em capítulo de novela, episódio de série e até comercial de Natal. Esse caso é grave, pois comerciais de Natal são para nos fazer gastar dinheiro. Emocionar é apenas um bônus na laboriosa produção da peça. 

E em meio a essa sensação de nervos à flor da pele, me deparo com um vídeo feito na Espanha sobre encontros virtuais e pessoais. Aí meu domingo de manhã virou uma choradeira. O vídeo mostra o reencontro de amigos queridos. O questionamento é sobre a última vez que se viram e a frequência dos encontros. Então é feita uma projeção de quanto tempo eles gastariam se encontrando. 

Terrível! Tem gente que vai se ver por 6 horas nos próximos 9 anos, por exemplo. Considerando que o relatório semanal do meu consumo de internet registrou 4h40m conectado, me senti mal com o tempo que ando perdendo olhando telas, como mostra o vídeo. 

Como disse meu amigo Paulo Carvalho, ao se referir a mim: “o piripaque do Cresinho nos lembrou que o amanhã é incerto”. Logo, temos que sair marcando todos os chopes pendentes. Eles poderão não acontecer. Essa, infelizmente, é a realidade. 

Minha amiga Cristiana Eboli disse que são os dilemas da modernidade. Pois é ganhamos a capacidade de comunicação praticamente infinita, no entanto, ela nos isola. Não atendemos o telefone, mas podemos “teclar”. Ligar é quase uma invasão. E engolidos pela rotina, empurramos sempre para depois aquele encontro, aquela risada. 

Quando minha mãe adoeceu, fiquei com uma ideia fixa: diria a ela,  várias vezes ao dia que a amava. Não sabia quando seria o fim, mas gostaria que a certeza do meu sentimento consolasse sua alma. Claro que havia o sentimento egoísta de confortar meu coração. Não queria correr o risco de não ter deixado claro para ela como a amava. 


Então, veja nos seu grupos de WhatsApp que amigos são imprescindíveis encontrar. Ria com eles, olhado seus rostos. Chamadas de vídeo não são  substitutas do toque e da risada. Cumplicidade virtual só enriquece os inventores dos algoritmos. Para o coração, vital mesmo é o encontro ao vivo.