sexta-feira, 23 de julho de 2021

Espelhos “sonoros” da alma

 A Rádio CBN faz 30 anos em 2021 e duas queridas amigas me enviaram um link com a retrospectiva de 2001, quando a emissora completava o décimo aniversário. O motivo é a participação deste que escreve na reportagem sobre o naufrágio da plataforma P-36,  na Bacia de Campos. Minha entrada é logo na início,  pois a explosão que deixou 11 mortos aconteceu em março. Acho que Stanley Kubric não tinha ideia que 2001 seria tão movimentado quando decidiu colocar o ano como título de um dos seus principais clássicos. Mas isso vou deixar para outro texto. Neste quero me preocupar com um aspecto do jovem de 29 anos que entrava no ar para transmitir aquela notícia (faria 30 anos em maio). A voz é uma das coisas que mais marcam a passagem do tempo em nossas vidas.  Ouvindo aquele flash a primeira sensação que me veio foi uma certa vergonha alheia. Nunca tive vozerão e isso sempre me incomodou. Nessa época ainda tinha uma mania besta de puxar o “s” para tentar anular meu sotaque carioca cheio de chiados. Graças à experiência me libertei desse hábito. Fiz a maior parte da minha carreira no rádio, apesar da minha voz. Hoje, me acostumei com ela.


O mundo é visual para grande parte das pessoas, talvez, por isso, muitos não percebam que a voz é tão ou mais reveladora do estado da alma do que a expressão facial, por exemplo.  Ouvindo o fragmento de 15 segundos  fiz um retrato da minha vida naquele momento: um profissional tateando o caminho que deveria seguir, tentando encontrar espaço, mas “importando” um sotaque que não era meu. 


Ao ouvir o áudio, a primeira coisa que meu filho disse foi: “por que você estava falando como paulista”? A resposta é filosófica, estava tentando me encontrar. E passados 20 anos em que o tempo pesou, mas insisti no fingimento de não perceber, descubro que essa empreitada de se procurar é eterna enquanto estamos por aqui. 


A voz humana mostra irritação, hesitação, medo, cansaço, amor e ternura. As mudanças estruturais na tecnologia deslocaram para o rosto e para os olhos a expectativa de tradução do estado de espírito. Mas a gente deve ouvir mais as vozes dos que nos cercam, além da nossa própria voz. 


Quem sabe acurando os ouvidos poderíamos aparar arestas, impedir conflitos e transmitir afeto. Para ouvir o que Milton Nascimento cantou como “a voz que vem do coração” é preciso ouvir como a voz emitida está chegando aos ouvidos dos que nos cercam. Temos que encontrar o tom correto para falar. A forma como falamos embala a vida ou fere a alma, a voz é instrumento da tolerância e da cólera. Cuidado com a sua voz. 


quarta-feira, 14 de julho de 2021

Prioridade não é exclusividade

 Motociclistas são muito abusados entendem que não pode haver mudanças de faixa, já que a “pista” do meio, ou o “corredor” pertence a eles. Ciclistas adoram uma contramão, subir numa calçada e com a justificativa de “um carro a menos”, barbarizam no ecossistema viário. 

Mas há um lugar em que o pedestre se vinga: a ciclovia da Lagoa. Mas é uma vingança com requintes de crueldade. Se a pessoa deseja saber como é isso, basta tentar pedalar na ciclovia num fim de semana. 

Esse problema me aflige porque tenho tentado usar a bicicleta como meio de transporte para trajetos curtos.  Ok, dou “uma roubadinha”, minha bicicleta é de “pedalada assistida”. Ou seja, se estou com preguiça, ligo a bateria e o “trabalho” fica mais fácil. Mas eu tenho que pedalar, a bateria faz apenas parte do trabalho. Não é uma moto disfarçada de bicicleta. 

Com essa explicação, voltemos à Lagoa. A primeira observação que faço são aos pais e mães “professores”. Eu sei que é função dos progenitores ensinar aos rebentos a arte de pedalar, mas é aconselhável levar a prole, por exemplo, ao Parque dos Patins. A ciclovia pode ser um ambiente hostil. Vejam Procurando Nemo. O peixinho sai da barreira de corais e acaba no aquário de um dentista, tendo como carcereira uma criança sádica. Então, primeiro eles deveriam ensinar a “navegação” em águas abrigadas e depois permitir que ultrapassassem a “barreira” de corais. 

Gosto de animais, não gosto de donos de animais que passeiam com os cães de coleiras compridas. Pois quando estão numa pista e deixam o pet na outra com a coleira no meio provocam engarrafamento na ciclovia ou até mesmo acidentes. Eu já voltei empurrando a bicicleta de Ipanema até Botafogo por que o dono não controlou o cão, me embolei com a coleira, caí, entortei a bicicleta e ralei o joelho. Ainda bem que o cão não se feriu, pois aí, além de lidar com a minha raiva do dono, teria que lidar com a culpa de ter machucado o bicho

Mas “gosto” mesmo dos que andam em dupla, tomando conta das duas mãos. Aqueles que caminham deliciados pela paisagem e se esquecem que há neuróticos que precisam passar.  Buzino, peço licença e, em casos extremos, grito: olha pista”!

Já pensei em mandar fazer uma camiseta “pedestres, prioridade não é exclusividade”, ou fazer uma plaquinha com os mesmos dizeres. Quem sabe os dois. Para não me aborrecer, nos fins de semana, acabo indo pelas ruas. E o que faço? Pego contramão, subo em calçadas… ciclistas são muito abusados.

quinta-feira, 8 de julho de 2021

Laranja mecânica sonora

 Viramos todos locutores de corridas no Jockey. As inflexões, as hesitações e os maneirismos na fala fazem parte da identidade das pessoas. O respirar a mais antes de responder, a rapidez ou lentidão do raciocínio fazem parte da comunicação. 


Ficamos afastados uns dos outros pelo ritmo de nossas vidas. A pandemia acabou acelerando o processo. Lembro que quis falar com uma amiga e ela me respondeu. “Posso ‘teclar’ falar só depois”. Isso se dá pela necessidade de fazermos várias coisas ao mesmo tempo. Falar ao telefone nos força a executar apenas uma tarefa e nossos tempos nos fizeram multifuncionais, mesmo que essa “configuração” não tenha vindo de fábrica. 


E o tempo, que nas palavras de Caetano Veloso é “um dos deuses mais lindos”, torna-se o “deus opressor”. É neste contexto que o WhatsApp apresenta a ferramenta de aceleração de voz. E aí, de humanos viramos máquinas. Nelson Motta escreveu e Lulu Santos cantou que “não existiria som, se não houvesse o silêncio”, com a nova ferramenta do aplicativo, o silêncio é suprimido. 


O primeiro áudio que ouvi acelerado me fez experimentar uma angústia análoga a do personagem Alex de Laranja Mecânica ao ser submetido a uma técnica de mudança de comportamento. Pupilas forçosamente abertas para receber um frenesi de imagens. 


Estamos subvertendo outra frase da canção Certas coisas “não haveria luz, se não fosse a escuridão”. A tecnologia parece querer abolir o silêncio e a escuridão. 


Nisso tudo acabamos produzindo um estágio permanente de urgência. Não há tempo de maturação. Somos impelidos a diminuir o tempo e a quantidade das piscadelas, pois cada uma delas pode nos fazer perder algo “imprescindível”. 


Chegamos a um tempo em que fechar os olhos é um ato de resistência. Não emitir opinião sobre qualquer coisa é rebeldia. Tornar o tempo em que se dorme produtivo é a última fronteira para o controle nessa sociedade. E havia gente que considerava Laranja Mecânica uma distopia. Isso foi porque essas pessoas ainda não receberam um WhatsApp em velocidade acelerada.