sábado, 23 de janeiro de 2021

Diário, meu diário

Itaipava, 23 de janeiro de 2021


Faltando pouco mais de quatro meses para completar 50 anos, me dou conta de que todas as tentativas de fazer um diário resultaram em interrupções. Talvez por isso, tenha começado este texto com data e local. Ou seja, tenho inveja de iniciar os escritos como tantos autores já o fizeram. 


Escrevo à beira da piscina de uma casa que não é minha, mas que o famoso aplicativo para aluguel por temporada me possibilitou. Estou isolado com minha mulher, meus filhos e meu sogro. Dormir com uma discreta mantinha de noite em janeiro é um luxo para um carioca da gema. 


Vi uma rã  em cima da verga da porta. Depois a vi na parede tal qual um homem aranha mutante. Confesso que meus conhecimentos em zoologia não foram tão profundos a ponto de saber que rãs subiam paredes. 


Aqui não dá para ficar com raiva das rãs, ou mesmo dos lagartos, mosquitos e outros insetos que nem sei definir, afinal, invasores somos nós. 


Mas vou voltar ao fracasso de ter um diário. A primeira causa é que eu não tenho disciplina para escrever todos os dias. Em 1987  eu fiquei dois dias sem escrever e aconteceu uma coisa importante. Quando fui atualizar, tive o descaramento de no dia anterior ao fato relevante, escrever uma frase enigmática que conduzia ao fque se sucedeu. Ou seja, forjei uma espécie de profecia para mim mesmo. Que mentiroso sórdido mente num texto que só ele mesmo iria ler? Neste sentido o jornalismo me salvou, neste e em muitos outros na verdade. O jornalismo me deu a preocupação em contar uma história corretamente do ponto que eu a testemunhei. 


Lembrar-me de tudo com exatidão está fora de questão. A vida é inexata, ela é mais como pintura abstrata que cada um sente de uma forma e menos um roteiro idealizado pelos grandes realizadores da indústria cultural. 


Não sei se gostaria de ter o poder de voltar ao passado para refazer percursos que me trouxeram até aqui. Conversando uma vez com uma amiga ela fez um comentário a respeito de um assunto: “talvez se eu tivesse sido mais ousada, mas aí não seria eu. Foi como foi”. 


Estou sob o sol há 18.136 dias. Tudo que chorei, amei, bebi, sofri e me magoei tornou essa caminhada possível. Se dedicasse a cada dia ao menos uma página, meu diário seria ilegível até para mim. O esquecimento serve como um macro editor. Para que a gente ao olhar para trás nestas datas simbólicas se atenha ao principal: as glórias, os constrangimentos, os amores e desamores, as preocupações justas e as injustificáveis só valem se o legados delas for o aprendizado. 



sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

Da “Era dos Festivais” ao The Voice Brasil

A noite insone do réveillon me fez rever o maravilhoso Uma noite em 67, de Renato Terra e Ricardo Calil, sobre o Festival da Record daquele ano. Minha filha quis manter a tradição recente que ela inventou de ver o primeiro nascer do sol no ano novo e ficou vendo o filme comigo. 


O documentário é uma preciosidade, o seria se fosse apenas uma compilação das canções, mas com o acréscimo dos depoimentos dos principais personagens daquele festival, tanto durante aquela noite, como passados mais de 40 anos, ficou maravilhoso. 


O resultado do festival colocou Ponteio, interpretada por Edu Lobo e Marília Medalha, em 1º lugar. Na sequência vieram Domingo no Parque, com Gilberto Gil e os Mutantes, Roda Viva, com Chico Buarque e o MPB-4 e Alegria, alegria, defendida por Caetano Veloso e um conjunto de rock argentino chamado Beat Boys. Isso sem falar em Cantador, com Elis Regina, uma linda canção de Dori Caymmi e Nelson Motta, que os diretores colocaram como trilha nos créditos finais 


Com o leviano papel de “comentarista de jogo acabado”, eu mudaria o resultado. Colocaria a classificação do primeiro ao quarto de cabeça para baixo e daria a vitoria a Caetano Veloso, Chico em segundo, Gil em terceiro e Edu em quarto. A trajetória das canções depois de lançadas explica meu revisionismo histórico-cultural. 


Interessante como as duplas Chico-Edu, Caetano-Gil e Chico-Caetano se associaram depois e fizeram trabalhos inesquecíveis, meio que corrigindo quaisquer fissuras que a competitividade fabricada num programa de televisão pudesse criar. 


Assistir ao festival de 67 foi como estar ao mesmo tempo no leito de núpcias em que a Tropicália foi concebida e na cerimônia de colação de grau em que Chico Buarque se sagrou o maior compositor de sua geração. Sem falar em Edu Lobo, que talvez tenha a obra menos popular, mas com uma sofisticação que ultrapassa qualquer cronologia, basta pensar que de suas mãos saiu aquela que é uma das canções mais importantes da MPB, Beatriz, não por acaso com letra de Chico Buarque. 


“Ah, mas não apareceu outro Chico Buarque, outro Caetano, outro Gil e outro Edu”. Bom, se você quer se lamentar por isso, não há razão. Os quatro estão vivos, trabalhando e brindando o público com pérolas, mais maduras, mas não menos inventivas ou geniais. Parece óbvio, mas vou repetir, o que mudou foi a forma que esses talentos são lançados. 

Marilia Mendonça, por exemplo, tinha milhões de fãs na internet antes que eu tivesse conhecimento de quem ela era. Em tempo, não estou comparando a qualidade da obra dos antigos com a da artista atual. 


Mas quero falar agora do The Voice Brasil. Desafio você que está lendo esse texto até aqui a dizer sem pestanejar (ou seja, procurar no google) os vencedores das edições da disputa de cantores da TV Globo. 


Talvez uma das razões para que tenhamos a impressão de que o reality da TV Globo não alavanque carreiras, como a “Era dos Festivais” fez, esteja explicada no musical Roda Viva, de Chico Buarque, que conta a história de um ídolo da canção que por fazer concessões à indústria cultural se perdeu. Ele escreveu a peça em 1967 e se queixava: “ A gente quer ter voz ativa. No nosso destino mandar, mas eis que chega a roda viva e carrega o destino pra lá”. 


Passados mais de 50 anos, essa indústria cultural aperfeiçoou seus mecanismos de controle. Paulinho Machado de Carvalho, ex-dono da Record, explicou que pensava nos festivais como se fosse um faroeste: tinha mocinho e tinha bandido, por exemplo. Hoje, essa lógica é muito mais sofisticada. Mais do que as vozes, os candidatos se apresentam com suas trajetórias de vendedores de bolo e profissionais da educação, por exemplo. O último ganhador do TVB, Victor Alves, é um excelente cantor, mas sua história pessoal comoveu tanto quanto suas irretocáveis apresentações no palco. 


A figura do jurado está presente nos dois modelos de programa. Um técnico que tem a capacidade de avaliar o que está sendo levado ao ar. Os jurados dos festivais avaliavam além do canto, a qualidade das composições, no The Voice eles julgam a performance dos cantores. 


Os festivais permitiam vaias, pois as torcidas se comportavam como se estivessem em jogos de futebol e não havia redes sociais para que as bolhas pudessem atuar. O hater era raiz, vaiava ali, na hora, tanto é que Sergio Ricardo não suportou o imerecido bullying em forma de vaia à música Beto, bom de bola, quebrou o violão e arremessou na plateia. Aliás, vaia era um clássico dos festivais. Nos anos 1960 vitimaram no Festival Internacional da Canção (FIC), organizado primeiro pela TV Rio e depois pela TV Globo, Nana Caymmi, com Saveiros (66) e Cynara e Cybele, Sabiá (68). Com o agravante de que Sabiá era “só” de Chico Buarque e Tom Jobim e é uma das canções mais bonitas da nossa música. Bem, em 1981, Lucinha Lins também conheceu a ira do público ao vencer com Purpurina, o hino ecológico Planeta Água, de Guilherme Arantes. Apesar da bela canção vencedora, o resultado do MPB-81, realizado pela TV Globo,, mostrou que o julgamento dos técnicos estava na contramão do publico e da história. 


No formato do The Voice isso foi superado em grande parte. Os jurados continuam a fazer uma seleção, mas vão gradativamente perdendo o poder de decisão. Na primeira fase escolhem o elenco que vai seguir no jogo. Depois, escolhem dentre esses os que vão em frente. Na semifinal do programa, como um super eleitor, dividem com o público quem vai para a finalíssima. Até que no último programa passam a ser espectadores privilegiados, pois o vencedor sairá do veredicto do público, uma massa disforme, composta por algoritmos, torcidas e fanpages. Os jurados estão salvaguardados de levar uma vaia e o público tem a falsa impressão de que decidiu o destino do vencedor. Na verdade, eles escolhem a partir do cardápio colocado pelo produtor da atração. Talvez falte uma ligação orgânica com os candidatos e por isso, os vencedores do TVB sejam mais facilmente esquecidos. 


Não há saudosismo nessa análise. Na verdade, o processo de criação de ídolos da indústria cultural apenas se modificou. Hoje em dia eles são mais fugazes. O público consumidor é maior e a “fábrica“ precisa otimizar o trabalho. Tem muita gente talentosa, mas premidas pelos “15 minutos de fama” apontados por Andy Warhol ficam menos tempo na ribalta porque a fila para aparecer é muito grande. Perdão, há uma saudade sim. A Record dos anos 60 estava na vanguarda da musica.