sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

Da “Era dos Festivais” ao The Voice Brasil

A noite insone do réveillon me fez rever o maravilhoso Uma noite em 67, de Renato Terra e Ricardo Calil, sobre o Festival da Record daquele ano. Minha filha quis manter a tradição recente que ela inventou de ver o primeiro nascer do sol no ano novo e ficou vendo o filme comigo. 


O documentário é uma preciosidade, o seria se fosse apenas uma compilação das canções, mas com o acréscimo dos depoimentos dos principais personagens daquele festival, tanto durante aquela noite, como passados mais de 40 anos, ficou maravilhoso. 


O resultado do festival colocou Ponteio, interpretada por Edu Lobo e Marília Medalha, em 1º lugar. Na sequência vieram Domingo no Parque, com Gilberto Gil e os Mutantes, Roda Viva, com Chico Buarque e o MPB-4 e Alegria, alegria, defendida por Caetano Veloso e um conjunto de rock argentino chamado Beat Boys. Isso sem falar em Cantador, com Elis Regina, uma linda canção de Dori Caymmi e Nelson Motta, que os diretores colocaram como trilha nos créditos finais 


Com o leviano papel de “comentarista de jogo acabado”, eu mudaria o resultado. Colocaria a classificação do primeiro ao quarto de cabeça para baixo e daria a vitoria a Caetano Veloso, Chico em segundo, Gil em terceiro e Edu em quarto. A trajetória das canções depois de lançadas explica meu revisionismo histórico-cultural. 


Interessante como as duplas Chico-Edu, Caetano-Gil e Chico-Caetano se associaram depois e fizeram trabalhos inesquecíveis, meio que corrigindo quaisquer fissuras que a competitividade fabricada num programa de televisão pudesse criar. 


Assistir ao festival de 67 foi como estar ao mesmo tempo no leito de núpcias em que a Tropicália foi concebida e na cerimônia de colação de grau em que Chico Buarque se sagrou o maior compositor de sua geração. Sem falar em Edu Lobo, que talvez tenha a obra menos popular, mas com uma sofisticação que ultrapassa qualquer cronologia, basta pensar que de suas mãos saiu aquela que é uma das canções mais importantes da MPB, Beatriz, não por acaso com letra de Chico Buarque. 


“Ah, mas não apareceu outro Chico Buarque, outro Caetano, outro Gil e outro Edu”. Bom, se você quer se lamentar por isso, não há razão. Os quatro estão vivos, trabalhando e brindando o público com pérolas, mais maduras, mas não menos inventivas ou geniais. Parece óbvio, mas vou repetir, o que mudou foi a forma que esses talentos são lançados. 

Marilia Mendonça, por exemplo, tinha milhões de fãs na internet antes que eu tivesse conhecimento de quem ela era. Em tempo, não estou comparando a qualidade da obra dos antigos com a da artista atual. 


Mas quero falar agora do The Voice Brasil. Desafio você que está lendo esse texto até aqui a dizer sem pestanejar (ou seja, procurar no google) os vencedores das edições da disputa de cantores da TV Globo. 


Talvez uma das razões para que tenhamos a impressão de que o reality da TV Globo não alavanque carreiras, como a “Era dos Festivais” fez, esteja explicada no musical Roda Viva, de Chico Buarque, que conta a história de um ídolo da canção que por fazer concessões à indústria cultural se perdeu. Ele escreveu a peça em 1967 e se queixava: “ A gente quer ter voz ativa. No nosso destino mandar, mas eis que chega a roda viva e carrega o destino pra lá”. 


Passados mais de 50 anos, essa indústria cultural aperfeiçoou seus mecanismos de controle. Paulinho Machado de Carvalho, ex-dono da Record, explicou que pensava nos festivais como se fosse um faroeste: tinha mocinho e tinha bandido, por exemplo. Hoje, essa lógica é muito mais sofisticada. Mais do que as vozes, os candidatos se apresentam com suas trajetórias de vendedores de bolo e profissionais da educação, por exemplo. O último ganhador do TVB, Victor Alves, é um excelente cantor, mas sua história pessoal comoveu tanto quanto suas irretocáveis apresentações no palco. 


A figura do jurado está presente nos dois modelos de programa. Um técnico que tem a capacidade de avaliar o que está sendo levado ao ar. Os jurados dos festivais avaliavam além do canto, a qualidade das composições, no The Voice eles julgam a performance dos cantores. 


Os festivais permitiam vaias, pois as torcidas se comportavam como se estivessem em jogos de futebol e não havia redes sociais para que as bolhas pudessem atuar. O hater era raiz, vaiava ali, na hora, tanto é que Sergio Ricardo não suportou o imerecido bullying em forma de vaia à música Beto, bom de bola, quebrou o violão e arremessou na plateia. Aliás, vaia era um clássico dos festivais. Nos anos 1960 vitimaram no Festival Internacional da Canção (FIC), organizado primeiro pela TV Rio e depois pela TV Globo, Nana Caymmi, com Saveiros (66) e Cynara e Cybele, Sabiá (68). Com o agravante de que Sabiá era “só” de Chico Buarque e Tom Jobim e é uma das canções mais bonitas da nossa música. Bem, em 1981, Lucinha Lins também conheceu a ira do público ao vencer com Purpurina, o hino ecológico Planeta Água, de Guilherme Arantes. Apesar da bela canção vencedora, o resultado do MPB-81, realizado pela TV Globo,, mostrou que o julgamento dos técnicos estava na contramão do publico e da história. 


No formato do The Voice isso foi superado em grande parte. Os jurados continuam a fazer uma seleção, mas vão gradativamente perdendo o poder de decisão. Na primeira fase escolhem o elenco que vai seguir no jogo. Depois, escolhem dentre esses os que vão em frente. Na semifinal do programa, como um super eleitor, dividem com o público quem vai para a finalíssima. Até que no último programa passam a ser espectadores privilegiados, pois o vencedor sairá do veredicto do público, uma massa disforme, composta por algoritmos, torcidas e fanpages. Os jurados estão salvaguardados de levar uma vaia e o público tem a falsa impressão de que decidiu o destino do vencedor. Na verdade, eles escolhem a partir do cardápio colocado pelo produtor da atração. Talvez falte uma ligação orgânica com os candidatos e por isso, os vencedores do TVB sejam mais facilmente esquecidos. 


Não há saudosismo nessa análise. Na verdade, o processo de criação de ídolos da indústria cultural apenas se modificou. Hoje em dia eles são mais fugazes. O público consumidor é maior e a “fábrica“ precisa otimizar o trabalho. Tem muita gente talentosa, mas premidas pelos “15 minutos de fama” apontados por Andy Warhol ficam menos tempo na ribalta porque a fila para aparecer é muito grande. Perdão, há uma saudade sim. A Record dos anos 60 estava na vanguarda da musica. 


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