quinta-feira, 10 de janeiro de 2019

As garças e os peixes

Todo dia que me ponho a escrever há uma bifurcação. Serei mais lírico ou serei mais crítico? Os dois caminhos são tortuosos. No lirismo a alma se escancara. O contato com sentimentos escondidos liberta as lágrimas. Às vezes, ser lírico num texto é muito doloroso. A alma visita lugares desconfortáveis, lembranças represadas que estão ali como camada de sedimento da sua alma. O movimento sísmico das emoções nem sempre gera acomodações das placas do coração. 

Ser crítico é cáustico. Faz com que você desopile queixas contra as trapalhadas, omissões e escândalos da vida. No entanto, o texto crítico suscita... críticas. A sociedade virou os pelos de uma zebra: ou são pretos ou são brancos. Se no primo do cavalo a mistura cria harmonia, no dia a dia, as opiniões diferentes podem acabar com amizades. Fazer um texto crítico é muito perigoso nesses tempos. 

Então é uma questão de escolha. Lírico ou crítico? Olhei uma imagem numa tarde de verão na Lagoa e pensei em escrever sobre ela. O quadro era assim:

Cinco garças estavam pousadas num  banco de areia na Lagoa Rodrigo de Freitas. Na posição em que estavam, os pássaros pareciam com a imagem bíblica de Pedro andando pelas águas. Tal como o discípulo que se tornou a pedra fundamental da igreja Romana, as garças são pescadoras. E ali, no banco de areia, em meio ao calor infernal do Rio de Janeiro, elas abaixavam a cabeça e pegavam os peixes que lhes garantiriam a refeição. 

O calor estava tão grande, que até elas, dotadas fisiologicamente para aguentar a temperatura, faziam o esforço mínimo para pescar o almoço. É interessante ressaltar que as garças são a definição da elegância. Pescoços longos, até na hora de buscar o alimento, se mantém galhardamente na postura. Eu, por exemplo, provavelmente seria uma garça desajeitada. 

De fora, observando aquele movimento gracioso, não atentei para o fato mais realista que ocorria. Um predador pegava sua presa. Para manter o ciclo alimentar, as garças pegavam os peixes incautos que se aproximavam do banco de areia. Enquanto eu via poesia nas cores da tarde carioca, um peixe nadava e encontrava seu trágico destino. Virava comida da ave. 

O encontro das garças e dos peixes, como tudo na vida, depende de que lado você está. A refeição nunca ficará confortável. Pois no meio da sua rotina, ela pode ser capturada e nunca mais ver a luz do dia. 

Os que defendem as garças dizem que elas devem atacar os peixes, e estes que aprendam a se defender. Afinal, os peixes também estão sendo prestadores de outra espécie e o ciclo segue assim por diante. O predador é sempre presa de alguém. 

Nesse momento empaquei. Não decidi se persistiria  no lirismos do nadar do peixe interrompido pelo oportunismo da garça, ou se começaria um texto sobre o liberalismo econômico das relações entre garças e peixes. Nesse ponto discorreria sobre a utilidade ou não da regulação do mercado. 

A verdade é que a garça sempre vai comer o peixe. E se o peixe almejar outro destino, por exemplo, migrar da Lagoa para o marzão  de Copacabana? Vai ter que dar muita sorte. 


E concluí que minha história das garças e dos peixes seguia híbrida. Garças e peixes são irreconciliáveis. Alguém sempre vai sair perdendo. Há lirismo na crítica, há crítica no lirismo. 

Um comentário:

  1. Ainda temos uma vantagem sobre garças e peixes: podemos coabitar sem engolir um ao outro. Mesmo sem conciliação ainda podemos ter neutralidade.❤

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