Sou um daqueles que já cometeram a blasfêmia de dizer que João Gilberto
era chato. Sim, a voz anasalada e a emissão suave eram para mim sonolentas. Com
Tom Jobim a identificação foi imediata, até porque, uma das músicas que me
lembro da infância é Águas de Março. Vinicius de Moraes me veio por meio da
Arca de Noé. Lembro de ouvir meu disco na vitrolinha laranja e decorar as
canções.
Com João Gilberto não teve jeito. Não tive a paixão arrebatadora
desde o início. Devo minha conversão à religião joãogilbertiniana ao cineasta
Gui Gonçalves. Talvez o próprio Gui não saiba disso ou mesmo não se lembre da
ocasião. Era janeiro de1995. Pouco mais de um mês antes, Tom Jobim
havia morrido e deixado um buraco do tamanho do mundo na música. Eu fazia um
frila na produção de um vídeo institucional. O Gui era o diretor e após as
gravações a equipe saía para jantar, planejar o dia seguinte e o principal,
pelo menos para mim, conversar sobre todos os assuntos. Numa dessas
resenhas (para usar um termo da moda), eu proferi a frase “João Gilberto é
chato”. Foi então que o Gui olhou para mim com compaixão e traduziu para aquele
jovem de 23 anos o que representava João Gilberto.
Gui foi didático, me explicou a cadência do violão do João
Gilberto e como em algum lugar a voz e o instrumento se encontravam na alquimia
do intérprete. Justiça seja feita ao meu irmão David. Ele já tinha tentado me
explicar isso, mas sabe como é, santo de casa não faz milagre. Então, há um
quarto de século sou convertido.
Entendi que João Gilberto é gênio. Tudo que eu falar dele já foi
dito com propriedade por alguém que entende mais do que eu de bossa nova,
harmonia, melodia, violão e banquinho. A música dele é um estado de espírito.
Ele foi parnasiano. Procurou a excelência e a precisão no canto e na destreza
com o instrumento. Mostrou que menos é mais e sim, foi arrebatador, mas sem
fazer alarde e sem histrionismo. Deu ao violão status de orquestra. Isso é para
poucos, na verdade, é para um só.
Já andei muito pela noite, conheci pessoas interessantes,
famosas e excêntricas. Mas lamento nunca ter encontrado João Gilberto. Já ouvi
muitas lendas sobre ele. Sua excentricidade circula nas rodas musicais. Aliás,
aos gênios é permitida a excentricidade
João se tornava “co-autor” de todas as musicas que interpretava.
Impossível dissociar dele Desafinado e Chega de Saudade. Mas a minha preferida
é Caminhos Cruzados, que encerra essa singela e pequena homenagem a João que
inspirou meus ídolos, Caetano. Veloso, Gal Costa, Gilberto Gil, Chico Buarque,
Novos Baianos e tantos outros.
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