segunda-feira, 1 de julho de 2019

Elis e as velhas roupas do passado

Elis Regina foi hostilizada por parte de seu público por ter cantado na Olimpíada do Exército. A cantora fez uma declaração criticando a ditadura durante uma turnê na Europa. Na volta, foi interrogada e para escapar da perseguição, foi obrigada a cantar no evento militar. 

O cartunista Henfil, um dos grandes nomes do Pasquim, ficou indignado com a cantora. Ele a enterrou no Cemitério dos Mortos Vivos, lugar para onde ele mandava todas as figuras que de alguma forma aderiam à ditadura. 

Henfil era irmão de Herbert de Souza, o Betinho, um dos brasileiros que tiveram que partir num “rabo de foguete” por conta da ditadura que alguns querem revisar e chamar de “movimento”. 

Outros episódios redimiram a cantora. Ela foi solidária à Rita Lee, quando a Rainha do Rock, foi presa por porte de drogas. Além disso, Elis cantou o “hino da anistia”, a belíssima e icônica O Bêbado e a Equilibrista, de João Bosco e Aldir Blanc. 

Mais ou menos 30 anos depois do episódio da Olimpíada do Exército, o assunto ainda era mal digerido. Em 2002, fiz um especial sobre os 20 anos da morte da cantora. Ao perguntar a um dos entrevistados o que aquilo significou, o jornalista se irritou por ter que responder. Na construção do texto eu até dizia que a cantora fora obrigada, mas o entrevistado se mostrou desconfortável por ter ouvido a pergunta. Deixei na edição a resposta um pouco malcriada da fonte. 

O episódio foi tratado, ainda bem. Isso me faz lembrar da confusão envolvendo Wilson Simonal e seu contador. A confusão fez com que o melhor cantor do país caísse no ostracismo. O excelente documentário Simonal - Ninguém Sabe o Duro que Dei relata o apogeu e a queda do Rei da Pilantragem. 

Resolvi falar do passado por causa do bom filme Elis. Nele ouvi a música Velha Roupa Colorida, de Belchior. Na canção tem um trecho que me chamou atenção: “No presente, a mente, o corpo é diferente. E o passado é uma roupa que não nos serve mais”. Ouso discordar do Belchior. 

O passado é uma roupa que deve nos servir de molde, principalmente, aquelas que “não caíram bem”. Desprezar o passado, ou esquecê-lo, pode fazer com que a gente erre “rude” (expressão que ouvi num vídeo do Porta dos Fundos e adorei). 

Entendo o espírito da época da música, e de fato, ficar preso ao passado impede a caminhada. É preciso revisitar o que deu errado no passado para não repetir o erro. É necessário olhar o que deu certo no passado para inspirar um futuro melhor. 

Pois a vida precisa de construção de memória. As pedras não vão sair todas do sapato, nos resta, de tempos em tempos, adequar os pés e a postura para poder andar, suportando as dores e até rindo, quando possível. 

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