quarta-feira, 3 de abril de 2019

O lugar de fala no jornalismo

Ouvi um locutor anunciar a notícia de um feminicídio. A voz pausada, grave, competente trazia a neutralidade exigida pelos cânones que regem o perfil da emissora em que ele atua. Quantas vezes ele leu notícias semelhantes?

É duro o ofício de quem lida com notícias todos os dias. Não há a opção pela desintoxicação ou por dar um tempo para não saber de nada que ocorra. Jornalistas  dormem sobressaltados. Sabem que no meio da noite podem ser despertados para cobrir um incêndio de grandes proporções, o desaparecimento de um avião, ou ainda a morte trágica de uma celebridade. 

Um dos desafios do jornalista é não ficar brutalizado diante da barbárie. É não blasé, no sentido que o sociólogo alemão George Simmel define como indiferença em relação às situações. Se por um lado, o sentimento blasé protege e permite ao jornalista narrar os fatos, ele também pode transportar o profissional para um lugar afetivo muito distante. 

Acho que em muitas oportunidades, o  chamado  “lugar de fala” pode mitigar essa indiferença em relação ao dia-a-dia. Conversava com um aluno que virou amigo sobre una matéria que ele acabara de escrever no trabalho. Era uma reportagem sobre pessoas veganas que vivem na periferia. Gostei muito da reportagem e falei a ele sobre o diferencial que é ter o lugar de fala para fazer esse tipo de matéria. 

Ele me respondeu que onde trabalha tem “muita gente que se formou há muito tempo, quando a universidade não tinha quase ninguém de baixa renda, pretos e periféricos. Então é quase sempre um choque de realidade para eles esses assuntos”. 

Dia desses fazia a distribuição de pautas para que os alunos elaborassem uma reportagem. Dentre as pautas, uma era sobre a participação de mulheres em ambientes geralmente dominados por homens, como carpintaria e serviços de bombeiro hidráulico. Por sorteio, a pauta ficou com uma dupla de meninos. Ponderei com a turma e propus trocar a pauta para que um grupo de meninas fizesse a matéria. Avaliei que elas fariam a reportagem com mais propriedade. Obviamente, a decisão é difícil. Muitas pessoas podem até não concordar. 

Acho até possível que um repórter de classe média possa fazer um reportagem sobre áreas periféricas, ou mesmo, que um homem consiga fazer uma pauta de interesse feminino. No entanto, a grande questão é que ao longo do tempo esses grupos não tiveram representatividade. Então, agora que essa representatividade é possível, nada mais natural que essas pautas ganhem voz também por intermédio de quem vive aquela realidade. 

Pouco tempo atrás viveu-se no mainstream da indústria cultural o conflito entre essas situações. O Oscar premiou Green Book com a estatueta de melhor filme, em detrimento de Infiltrado na Klan. Falo tranquilamente sobre isso, porque gostei dos dois filmes. Mas não dá para comparar o tipo de mensagem. O filme de Spike Lee traz na mensagem anti-racista a força de um cineasta que tem “lugar de fala”, ao passo que Green Book é um filme que pode ser traduzido como “eu até tenho amigos negros”. Para que algum não representante dessas áreas periféricas possa fazer uma reportagem alentada sobre a periferia é necessário fazer o que nas ciências sociais chama-se de pesquisa etnográfica. Viver aquela realidade por um tempo. Infelizmente, a velocidade de nossos tempos não permite que os repórteres das grandes redações tenham tempo para esse aprofundamento. 

Em nenhum momento defendo que haja uma exclusão do que no jornalismo se chama de “olhar estrangeiro”.  Na verdade, jornalismo deve ter inclusão e pluralidade. Mas é chegada a hora que essas vozes, tão pouco ouvidas anteriormente, ganhem cada vez mais espaço. É bom para a democracia , para a liberdade e para o jornalismo. 


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