terça-feira, 27 de novembro de 2018

Escola sem partido e sem alma

Numa vida passada, pensei que poderia ser compositor de músicas. Foi mais ou menos depois de desistir de ser o Super Homem. Outro dia revirei uns cadernos para ver o que escrevia há 30, 35 anos. Sim amigos, desafio folhas em branco há mais de três décadas. Ler os textos do passado pode provocar vergonha ou orgulho, que não são necessariamente sentimentos excludentes sobre o mesmo texto. 

Em 1987 eu tentava uma letra que era assim:  “em nome da moral e os bons costumes, acabam com a moral e os bons costumes. Invadem torturam e esmagam vidas sedentas de amor. Em nome do amor e a liberdade, acabam com o amor e a liberdade e abrem enormes feridas no peito dos mais machucados. Inventam doutrinas e leis esquecendo que o princípio é amar, inventam doutrinas e leis esquecendo que o princípio é amar”. 

Perdão pela pobreza do jogo de palavras. Perdão pelo “compositor” de 16 anos que cometeu esses versos. Eu lembro até da melodia que tinha em mente para a “canção”. Não estou lembrado é se cheguei a mostrar essa letra para o Roger, meu comparsa nessas aventuras musicais. 

O problema do pueril texto de mais de 30 anos é que ele me parece atual. A nova ordem decidiu cuidar da moral e dos bons costumes. Se o jornal publicar uma notícia que os desagrada, organiza-se uma onda de boicote das assinaturas. “Não é “normal” existirem casais homoafetivos. Então, vamos dificultar que eles adotem crianças. Não é possível que uma união promíscua possa dar boa formação a uma criança”. E lá se vão os valores tradicionais a impedir que crianças abandonadas tenham uma família. 

“Ah, meu filho precisa ter liberdade de escolher suas ideias políticas, as escolas não podem fazer doutrinação”. E nessa visão curta, começam as perseguições aos professores pois afinal “Escola ensina, família educa”, prega o movimento Escola sem partido. 

Ao coagir escolas e professores para que seus filhos não tenham contato com um conteúdo “tóxico”, país estão acabando com a liberdade da docência. O que se quer é um conteúdo asséptico, sem alma. 

Não existe essa separação entre educar e ensinar. As duas coisas estão intrinsecamente ligadas. Famílias e escolas precisam estabelecer uma parceria. Os pais não podem se comportar como bedéis a vasculhar o que é ensinado na escola. Eles devem procurar saber qual a proposta pedagógica da instituição de ensino, antes de matricular a criança nela. 

Muitos dos pais que vociferam contra os professores e suas teorias “esquerdizantes” são os mesmos que durante a semana chegam às 10 da noite de seus escritórios e não veem os filhos acordados. No fim de semana contratam babás para cuidar das crianças. 

“Em nome do amor e da liberdade, acabam com o amor e a liberdade”. A liberdade que a nova ordem prega é para alguns. Moradores de áreas periféricas continuarão sem liberdade. Continuarão a ser vítimas de um sistema que criminaliza a pobreza. Cidadania restritiva, cruelmente, é uma cidadania pecuniária. Quanto mais se tem, mais se é cidadão. Os comandantes da nova ordem “abrem enormes feridas no peito dos
 mais machucados”
 
A Bíblia anda mais valorizada do que a constituição. Muito se fala de reformas trabalhistas, políticas e previdenciárias, leis sobre o que não se pode falar, exibir e investigar. Não sei que Bíblia essas pessoas andaram lendo. Pois o princípio maior da Bíblia é Ama ao teu próximo como a ti mesmo. Na versão desse povo o mandamento foi atualizado. Odeie ao teu próximo se ele não for como você. 

A nova ordem nada mais é do que o velho reacionarismo espalhado pelos grupos de WhatsApp. O passado está sendo reescrito. O que era repressão virou ordem, o que era recessão virou austeridade e o que era ditadura virou democracia com governo forte. Por isso meus versos de três décadas atrás soam cruelmente atuais. 
I

Um comentário: