sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

Casos da família Soares







Toda família tem um “oráculo”. Aquela pessoa mais velha, que conhece todos os casos, as lendas, as intrigas e as curiosidades. Na minha família ela se chama Nelly Soares Xavier, a minha tia Nelly. 

A chamo de tia, mas na verdade ela é minha prima. Aos 87 anos adora conversar, contar casos e escrever. Já escreveu alguns livros para o consumo da família. Tia Nelly entende de taoismo, política e história. Ela conta orgulhosa que quando morava na Rua Paysandu, no Flamengo, encontrava o presidente Getúlio Vargas passeando por ali. Uma vez ele brincou com ela e a chamou de colega. Tia Nelly desconfia que o caudilho fez alusão ao fato dos dois serem gordinhos e baixinhos. Ela tem muitas teorias, uma de que Moisés era na verdade o faraó Akhenaton. Não me sinto capaz de discutir, meus conhecimentos não chegam a essa profundidade. Há 5 anos fiz uma foto no dia em que ela teria exatamente o dobro da minha idade. Já falei de minha obsessão por números. Foi simples achar o dia: calculei quantos dias ela tinha vivido até a data do meu nascimento. Quando eu alcançasse essa marca, seria o dia que ela teria o dobro da minha idade. Foi em agosto de 2012. 

Sempre volto da casa da Tia Nelly com algum caso novo, alguns parecem contos de terror, outros são idiossincrasias da formação da família e os que viram piadas mesmo. 

Tia Nelly é minha parente "de sangue" mais velha e como está lúcida guarda histórias sensacionais. Vou contar três recolhidas no nosso último almoço. 

A primeira aconteceu por volta de 1850, em Alegrete, cidade gaúcha de onde veio a família de meu avô paterno. O caso foi assim: eram dois irmãos, o mais velho constituiu família, mas não deu muita sorte nos negócios com as terras. O mais novo permanecera solteiro e ficou rico. 

Os dois irmãos conversaram e chegaram à conclusão que o dinheiro deveria permanecer na família. A solução encontrada foi que o irmão mais novo casasse com a sobrinha. A menina tinha 9 anos, mas mesmo assim as tratativas foram em frente.

Os dois casaram, aconteceu uma festa rica e animada. No fim do dia, o casal se recolheu. O noivo então quis que o casamento fosse consumado. Dirigiu-se à esposa/sobrinha e disse: “vamos nos deitar”. A menina respondeu: “não, quero brincar com minhas bonecas”. O Esposo/tio continuou: “se você não vier, vou me matar”. Aí a crueldade infantil se manifestou: ”pode se matar”. Em vez do casamento, o que se consumou foi a tragédia. O homem pegou a arma e se matou.

Perguntei à Tia Nelly se a sobrinha/viúva se casou depois. Ela disse que sim, pois essa menina é nossa “tatatatatatataravó” (ela não soube me precisar quantas gerações acima da nossa ocorreu esse drama familiar) O que ela conta é que em 1948, ao visitar nossos parentes em Porto Alegre, eles lhe contaram que passado quase um século, ainda ia gente da família à casa em que aconteceu a tragédia. A parede permanecia suja de sangue como um relicário do casamento infeliz.

Esse negócio de casamento em família iria continuar:

Simeão Estelita da Cunha Soares e Ana da Cunha Soares casaram-se e tiveram três filhos: Manoel Gratolino Soares, Juvenal da Cunha Soares e Arlinda Soares. Aos 22 anos Simeão enviuvou e casou-se com Francisca Lopes, vulgo, prima Chica, cujo o apelido deixa evidente o parentesco. O tempo passou, Arlinda Soares, filha de Simeão, ficou mocinha casou-se com Missioneiro Lopes. Quem é Missioneiro Lopes?  Ele era irmão de Chica Lopes. Para quem se perdeu vou explicar melhor. Chica era prima, madrasta e cunhada de Arlinda. Já Missioneiro era primo, genro e cunhado do Simeão Estelita. E quem era Simeão Estelita?  Meu bisavô. Essa barafunda genealógica  aconteceu apenas três ramos acima dos meus “galhos”. 

Para encerrar, vou contar uma história do ramo familiar da Tia Nelly. Ela é filha do escritor e jornalista Raul Xavier. Tio Xavier trabalhou no Correio da Manhã, Jornal do Commercio e Diário Carioca entre outros. Foi autor de alguns livros de poesia e romances, além de ter traduzido algumas obras como Textos Sagrados do Tibet, Textos Sagrados das Pirâmides e Milinda Panda (Doutrina do Budismo Ortodoxo) por exemplo. Lembro–me do Tio Xavier no final da vida. Ele estava sempre lendo. Na casa da Tia Nelly tem alguns quadros pintados pelo pai. Pois bem, fiz um resumo da biografia do Tio Xavier para contar uma passagem menos nobre de sua vida.

Ele estudava no renomado Seminário da Prainha, em Fortaleza. No entanto, ao final do ano letivo, o diretor do seminário chamou o pai do Tio Xavier para uma conversa franca. Tio Xavier e o pai sentaram na frente do religioso e ele foi direto ao assunto: “O Raul não pode mais continuar no seminário”. O avô da Tia Nelly quis saber o motivo para a saída. O argumento do diretor foi definitivo. “O Raul tem cara de Diabo, não pode ser padre”.

Era 1926 e diante de argumento tão embasado, não restou ao Tio Xavier outra alternativa: veio para o Rio de Janeiro. Casou-se com a Tia Iná e tiveram a Tia Nelly.

Às gargalhadas Tia Nelly concluiu: “poxa, o papai era feio, mas cara de Diabo é demais”.

Até amanhã!

Um comentário:

  1. Tio Xavier viveu no tempo em que não existiam alguns conceitos como bullying, assédio moral, etc.
    Aviso aos menores de 20 anos e adolescentes em geral - este tempo já existiu. Bizarro!

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