sábado, 4 de novembro de 2017

Cortina rasgada







Aos 16 anos eu tinha metade do peso que tenho hoje. Estou falando de 30 anos atrás, quase dois terços da minha vida já transcorreram desde o episódio que vou narrar. A moeda era o Cruzado, a novela das 8 era "O outro", do Aguinaldo Silva. A música de abertura era do Ira! (Vejo flores em você) e o Francisco Cuoco ainda fazia papel de galã.

Fazia o primeiro ano no Cefet e a vida era sensacional, apesar do Sarney e da inflação. Depois de passar pelo primeiro grau (alerta de idade acima dos 40), entrar naquela escola foi o máximo. Era um esquema de universidade. Você tinha aula em diferentes salas, não tinha um inspetor tirando você do pátio. Liberdade total! Como já contei, essa liberdade cobrou um preço, pois afinal fiz de tudo menos estudar naquele ano. Aí...

O intervalo no Cefet era uma festa. Jovens entre 15 e 20 anos convivendo naquele pátio imenso. Geralmente as pessoas ficavam em suas tribos, que não necessariamente eram com as pessoas de seus cursos. O curso de mecânica, predominantemente masculino,  tinha os caras populares, fortes e bons de esporte. Eletrônica e Eletrotécnica tinham a galera que hoje em dia a gente poderia chamar de “nerd”. Meteorologia tinha muitas meninas, o que obviamente despertava o interesse da rapaziada e havia a Construção Civil. Talvez fosse o público mais eclético.  Tinha o número de meninos e meninas parecido, muita gente inteligente e alguns malandros (me encaixava nesse time).

Amigos, exercícios de memória levam em conta o que os acontecimentos deixaram impressos na alma. Se algum integrante da comunidade “cefetiana” achar que não era assim a distribuição antropológica dos grupos pode discordar.

Voltando ao recreio, num determinado dia, eu e um amigo fomos fazer uma brincadeira e nos demos mal. Era o seguinte. Uma pessoa ficava em pé de costas para outra, enganchava o braço e tirava os pés do outro do chão. Acho que na época a brincadeira tinha um nome, mas o tempo corroeu essa memória. O fato é que quando meu amigo Ricardo Rapunzel me levantou, esqueci um conceito elementar da física, o chamado centro de gravidade. Joguei as pernas para cima. Caímos os dois, no meio do recreio, com o pátio lotado. A gargalhada foi geral. Fiquei envergonhado, catei os cacos de minha dignidade tentando sobreviver nos 30 anos seguintes.

Vivemos a era da vigilância e do espetáculo. O raciocínio não é meu, é do escritor americano Jonathan Crary. O que você fez em qualquer tempo, pode voltar em forma de post do facebook, fotos ou até mesmo entrevista. Meu “mico” no recreio hoje em dia poderia virar um meme, um gif e representar qualquer piada cibernética.

O caso envolvendo o excelente ator Kevin Spacey mostra que essa vigilância pode se estender a qualquer período de sua vida. Há 31 anos, ele tentou abusar de um menor em sua casa. Não adianta, a sociedade da vigilância é inclemente com os erros. O que ele fez foi grave, deveria ser denunciado e o caso teria que se resolver na justiça, com a pena proporcional prevista na lei americana. No entanto, o caso se prolongou e só ganhou publicidade agora, para o azar de Spacey. Na era da vigilância e do espetáculo é assim. Não há espaço para mediação, a condenação sai num tribunal virtual.

Quando comecei a pensar nesse assunto, dei o benefício da dúvida.  O ato foi abominável, mas poderia ter sido um caso isolado, um porre pelo qual se arrependeria pelo resto da vida. No entanto, reportagem da CNN revelou mais 8 casos em que Spacey teve um comportamento abusivo. Se apenas o caso de 1986 já seria suficiente para que sua biografia ficasse manchada, o que dizer então da repetição de um padrão comportamental inaceitável.

Para os fãs de Spacey, existe uma frustração dupla. Além de se revelar um tipo de pessoa detestável por usar do poder e da fama para coagir as pessoas com fins sexuais, existe a frustração artística: o ator não estava interpretando Frank Underwood, ele era Frank Underwood. O que para muitos era talento, era o extravasar de uma face muito feia que a equipe de produção já conhecia. Repete-se então em nível bilionário e internacional a história que aconteceu com o ator José Mayer. Precisou que um caso aparecesse para que outros se revelassem.  

E se Frank Underwood usou de espionagem para conseguir chegar aos seus intentos e ficcionalmente mostrar o poder da sociedade da vigilância, Kevin Spacey viu na vida real que não adianta guardar os esqueletos no armário. Como num filme de terror, eles ganham vida, abrem as portas e rasgam as cortinas do que se pretendia esconder.


3 comentários:

  1. Show de bola. Era assim mesmo nossa época de CEFET. Já localizei o Rapunzel e estou tentando trazê-lo pro nosso grupo, mas ele é arredio aos avanços tecnológicos ... Rsrs

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  2. Creso, não que eu queira fazer com que essa vergonha antiga te assombres ainda mais, mas eu me lembro desse dia!!!! A memória por estes lados aqui também anda falha, mas vc conseguiu ressucitar um esqueleto escondido!

    Enfim, excelente trabalho. Curto lê-lo quando posso. Continue recordando e escrevendo essa literatura tão prazerosa. Bjks mil

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