quinta-feira, 2 de novembro de 2017

Vou mudar de negócio








Dom Corleone chega à funerária tarde da noite. Ele conversa com o dono, um homem que lhe devia favores. Tira o pano mortuário de cima do filho Sonny e pede: “quero que a mãe possa ver seu rosto”. O herdeiro do clã mafioso acabara de ser assassinado numa emboscada e levara dezenas de tiros, inclusive na face. Vamos para a cena ena final de Tropa de elite 1  (alerta de spoiler) , Baiano pede ao capitão Nascimento: “no rosto não, só para livrar o enterro”. As frases podem não ser exatamente essas, pois as cito de memória, mas o sentido é o mesmo: a importância do rosto do morto na hora do enterro.

Ao pensar em alguém que não está mais com você, a primeira lembrança geralmente é do rosto da pessoa. No entanto, seu relacionamento afetivo passa por uma transformação. A ausência faz com que o ditado popular seja contrariado. Ao não poder mais interagir fisicamente com quem amamos, pensamos, quem “vê cara, vê coração”.

O rosto e suas transformações são a paisagem que vamos percorrendo. Rostos lisos que vão se modificando com as chamadas marcas de expressão. Marcas que são nada mais, nada menos do que a exteriorização dos nossos sentimentos. O rosto diz muito sobre nós. Mesmo o dissimulado profissional tem um átimo de segundo em que o rosto lhe trai e revela algo que ele não queria deixar passar.

Descobri no ótimo, porém tardio, Conversa com Bial, que o profissional que cuida do rosto dos que morrem é tanatopraxista. Numa pesquisa rápida, descobri que a preparação do corpo para um enterro custa em média de R$ 550. É uma preparação para que aquela última visão que vamos ter de quem partiu seja a mais parecida possível com a aparência que tinha em vida.

Quando lembro de quem partiu, a primeira imagem é a do sorriso. Não é o rosto com olhos fechados e muitas vezes com chumaços de algodão nas narinas. Nessa hora da despedida, o que mais lembro é da temperatura das mãos. É de um frio único, que passados vários anos, não saem do repertório mórbido que é despertado em datas como o Dia de Finados.

Não tenho uma boa relação com a morte. Talvez por ter tido um pai 60 anos mais velho do que eu, tenha convivido muito de perto com a decrepitude e o pavor que o inevitável acontecesse logo. Diante das perspectivas, acho que o tive por bastante tempo. Admiro quem consegue ter uma relação com o luto altiva e conformada. Não sou assim, mas é o tipo de coisa com a qual é inevitável tratar.

No Conversa com o Bial, uma dona de cemitério disse que um dos serviços que oferece é uma caixa de memórias. As famílias podem colocar em cima das lápides uma caixa. Lá são colocados bilhetes, cartas e fotos do morto e da família. Alguns veem nisso um jeito de continuar conversando com aquele que partiu.

No filme, Forrest Gump enterra a amada Jenny no quintal de casa e conversa com ela. Ele fala de como está a vida e como o filho deles está crescendo. O pequeno Forrest faz uma carta, não deixa o pai ver e coloca debaixo de uma pedra para que a mãe possa ler. A caixa de memórias e a carta do menino são momentos de conforto. Alivia um pouco pensar que as pessoas amadas vão continuar velando por nós ao partir.

Como tudo na vida, a morte apronta algumas piadas. O prefeito de Biritiba Mirim, no interior de São Paulo, proibiu as pessoas morrerem na cidade. Pedro Bial mostrou imagens de velórios em Porto Rico que beiram o surrealismo. Um homem jazia em sua moto, em posição de corredor. Óculos e jaqueta de couro em posição de piloto de corridas!!! O outro morto estava em pé, atrás de uma mesa com enfeites de aniversário.

Também tenho uma história engraçada nesse universo. Fui fazer uma reportagem sobre a venda de itens apreendidos pela receita. Havia dentre eles um lote de 105 caixões tailandeses de alto luxo. Um comerciante se enganou e arrematou os caixões pensando que estava comprando um lote de bambolês e de ioiôs. Os jornalistas foram conversar com ele e a resposta foi objetiva: vou mudar de negócio.


Na verdade, temos algumas mortes na vida. Elas são seguidas de renascimentos. Mesmo a Morte, aquela que associamos a ideia de ceifadora das vidas, guarda um renascimento. A pessoa sai do plano das imperfeições físicas e renasce no campo das perfeições afetivas. Com o tempo, só as boas lembranças ficam. 

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