domingo, 20 de maio de 2018

O fim da imortalidade é um tremendo tapa na sua autossuficiência

Cazuza não é dos meus cantores prediletos do Rock Brasil. Prefiro-o como poeta. Sua acidez em alguns momentos é profética. Algumas de suas frases me tomam em pequenas situações e me ouço cantando aquele trecho várias vezes no dia. 

Ele cantou por exemplo “amor na prática é sempre ao contrário”, a melhor tradução para este sentimento que é o “avesso, do avesso, do avesso, do avesso”, para citar outro poeta, aliás bem amigo de Cazuza. 

Nada mais saboroso do que a “sorte de um amor tranquilo, com sabor de fruta mordida”,  porém, perceber que a pessoa ao seu lado “prendia o choro e aguava o bom do amor” é angustiante. 

Mas o Cazuza que tem mais me cercado é aquele que cantou “Senhoras e senhores, trago boas novas, eu vi a cara da morte e ela estava viva”.  O susto que levei há 13 dias ainda é uma lembrança bem presente. Clinicamente, as coisas estão ajeitadas. Ajustes na dieta e no ritmo da vida farão com que o stent seja um elemento novo, mas naturalizado rapidamente. 

O que demora mais a passar é a avalanche de sentimentos vinda do susto. Por isso, a lembrança da canção de Cazuza. A morte não rondou meu leito. Graças a ação rápida dos médicos e, para mim, uma ajuda divina, menos de uma hora depois do infarto eu estava medicado e monitorado. No entanto, se não esteve ao pé da minha cama, a morte colocou a carinha na porta do quarto e olhou para mim. 

E que cara tem a morte nesses casos? Bem, para mim ela apareceu como um espelho em que me vi fazendo varias coisas. É o tal “filminho” da vida. A película entremeia bons e maus momentos, até que você se vê na tela assistindo ao “filminho”. 

Há vários momentos na vida em que você perde a noção da imortalidade, ao perceber a cara da morte, mesmo que desfocada, como no meu caso, dá a você a noção da finitude da vida. 

Lembrei da primeira vez que voei sem portas num helicóptero. O piloto advertiu-me para que não olhasse o esqui da aeronave. Dizer esse tipo de coisa só tem uma função. Fazer você desobedecer a orientação. Pois bem, enquanto você faz o sobrevoo, sente-se inserido na paisagem. Olhar o esqui dá a real dimensão da altura em que você se encontra e desnaturaliza o olhar de cima que se tem da cidade. 

É isso, ver a cara da morte e ela estar viva é o olhar para o esqui do helicóptero. Você percebe que está numa máquina pilotada por alguém, máquina e piloto de quem você precisa para continuar voando. O reconhecimento da mortalidade é a percepção que por mais autocentrado que você seja, depende de outros fatores, além da sua vontade, para continuar a trajetória na terra. 

Se você vai à pé, de bike, de carro, de helicóptero ou de avião, depende do caminho e das distâncias que você traçar. Mas a consciência da mortalidade é um tremendo tapa na sua autossuficiência. 

Um comentário:

  1. Nada fácil, com certeza, querido. Que bom que você está bem. Agora é aproveitar mais cada momento ao lado de quem você ama e dar aquela freada na ansiedade da vida. 💚

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