sexta-feira, 4 de maio de 2018

o jornalismo e as condenações prévias

Em março de 1998 ao ingressar para cobrir férias na Rádio CBN recebi um manual de redação do SGR organizado pelo meu amigo e mestre Mauro Silveira. Hoje com orgulho o chamo de amigo, mas na época, ele era um dos chefes que despachavam com a gente as matérias. 

Guardo o manual até hoje, vou usá-lo num texto que preparo para uma disciplina do mestrado. Na publicação havia a recomendação de chamar pessoas que ainda não foram julgadas e condenadas de suspeitas. Como dizem meus amigos advogados, a alternativa à lei é a barbárie. Então passei a tratar suspeitos como... suspeitos. 

No entanto, no jornalismo, esta regrinha básica tem sido burlada. Gostaria de falar sobre uma manchete do Jornal O Globo no último domingo. No texto vinha a afirmação de que o ex-secretário Beltrame recebia R$ 30 mil mensais em propina, de acordo com um dos delatores. 

O problema foi a a construção da frase. Apesar de menos impactante, talvez fosse melhor dizer: Delator acusa Beltrame de receber propina  mensal de R$ 30 mil durante 7 anos. No entanto, a apresentação da frase na ordem inversa chamava mais atenção e ao leitor mais apressado, condenava o ex-secretário. 

Independentemente de você acreditar ou não na propina, nossa sociedade está acostumada a condenar quem é citado em delações antes mesmo do julgamento. No nosso império das fake news, a não apuração ou a “compra” da versão dos delatores faz com que a opinião pública substitua júris legalmente constituídos. O resultado do inquérito é detalhe, vale a primeira informação saída da delação. 

Há uma semana li também no Globo a reportagem sobre a delação premiada do ex-ministro Antônio Palocci. O que chamou minha atenção foi o fato da reportagem trazer o teor do que Palocci falaria no depoimento. A delação não foi homologada pelo juiz Sérgio Moro, mas o leitor do Globo já sabia que no depoimento Palocci faria mais acusações a Lula e complicaria a situação da ex-presidente Dilma. 

Então antes mesmo da homologação já começa a condenação por parte da opinião pública de Dilma Roussef e o agravamento da situação jurídica de Lula. 

Aqui não entra no mérito se a delação é verdadeira ou falsa, se quero ou não que Lula e Dilma sejam incriminados. O que está em jogo é o uso de delações premiadas como provas definitivas para a condenação de alguém. Cabe ao delator provar que Beltrame levou o dinheiro. Mesmo que não prove, a “condenação” do ex-secretário já está sacramentada pela opinião pública. 

Sempre fico me perguntando o interesse de quem passou a informação para o jornal. Obviamente é ganhar mais argumentos em sua investigação, estabelecer algum tipo de pressão sobre o judiciário. Sérgio Moro estaria impelido a  homologar a delação de Palocci diante da divulgação do jornal? 

Publicar o acordo para delação e construir  o restante do texto na condicional com termos como “teria”, “poderia” e “deveria” não me parece ser jornalisticamente o melhor caminho. 

Citei dois exemplos d’O Globo, mas não desejo que seja interpretado como uma crítica exclusiva ao jornal. Quero antes de tudo chamar atenção para o espírito de pré-julgamento da nossa sociedade. Pensando nisso, ao tratar do escândalo da ginástica, classifiquei o ex-treinador da seleção como suspeito. O inquérito nem foi concluído, ou seja, ele não foi julgado, tampouco condenado. 


Talvez encaremos a demora dos processos penais no Brasil como sinal de impunidade e defendamos atalhos na lei para aplacar nosso espírito de vingança. Na verdade, seguir a lei não é uma forma de defesa de “bandido”, antes, é um jeito de defender a sociedade como um todo. 

3 comentários:

  1. Lamentável que o já longínquo caso da Escola Base não tenha servido de aprendizado

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  2. Lamentável que o já longínquo caso da Escola Base não tenha servido de aprendizado

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  3. Parabéns pelo texto! Ótima e leve leitura! Sucesso!

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