sábado, 21 de outubro de 2017

A força do querer ser mulher









Termina a novela e começa o Globo Repórter. Ainda impactado pelo ritmo eletrizante do último capítulo, vejo a entrevista de Hélter Duarte com Dan Stulbach. Uma cena periférica me chamou a atenção. Raul Gazolla passa por trás e dá um abraço em Glória Perez. Há 25 anos os dois trazem uma dor inesgotável por causa da morte de Daniella Perez. Ele é viúvo da filha da autora. 

A vida seguiu. Depois de 1992, Glória escreveu sucessos como O clone e Caminho das Índias. Criou obras médias como América e coisas ruins como Salve Jorge.  A vida é assim, a gente se supera e segue em frente, errando ou acertando, mas caminhando. 

Glória acertou na mão em A força do querer e fez da mulher a grande força da novela. As mulheres foram para o centro da cena e cumpriram papéis que a semântica dramatúrgica reservava aos homens. 

Vejamos o exemplo de Jeiza. A heroína "viril" da novela.  Glória subverteu até o dicionário que usa o termo para se referir ao homem. No entanto, Jeiza se encaixa no ideário de virilidade. Teve uma porção de Capitão Nascimento, nas incursões ao morro. Se você tiver curiosidade faça uma comparação de trechos da novela com o filme de Zé Padilha.  

Glória deu à personagem características que antes eram destinadas aos homens. Jeiza foi a protagonista do que poderíamos chamar do núcleo "ação" da novela, sendo policial e lutadora de MMA. Tente se lembrar de alguma outra novela em que a mocinha romântica apareceu com o rosto sangrando e com o protetor bucal sujo.  Além disso, Jeiza fez parto, resolveu conflitos e mediou sequestros. 

Outras mulheres já foram personagens "viris", o exemplo mais rápido que me veio à cabeça foi o Pereirão, de Lilia Cabral, em Fina Estampa. No entanto Jeiza fez tudo isso e em nenhum momento foi "borralheira", aquela que precisava do poder de um amor para tomar um banho de loja e se transformar em princesa. Ela era a heroína do núcleo de "ação" e também ocupou o papel de mocinha romântica, ao se relacionar com outros dois mocinhos, Zeca e Caio. 

Lília Cabral deu sua contribuição no que alguns classificam de merchandising social da autora. Glória traz à tona questões como desaparecimento de crianças, tráfico humano, entre outros problemas, para falar da importância de ter cuidado com isso. Aliás, essa característica da obra de Glória Perez remonta ao teatro melodramático francês do século 18, quando a arte foi usada para "educar" o povo. Passou também pelo cinema e obviamente chegou na televisão. A diferença agora é que o papel de viciada em jogo coube a uma mulher. Os mais noveleiros vão lembrar da Heleninha Roitman que também tinha um vicio, só que em bebida. Mas Silvana enganou o marido, a filha, pegou dinheiro emprestado com agiota e sustentou a trama do vício durante a novela inteira. 

Em 1968, Bráulio Pedroso escreveu, Lima Duarte dirigiu e Luiz Gustavo deu vida a Beto Rockfeller. A novela da Tupi entrou para a história pela linguagem. O personagem de Luiz Gustavo, um tipo malandro e esperto ganhou a simpatia de todo o público. Em A força do querer, Glória Perez criou Ritinha. Leviana, seduziu dois homens. Deixou um deles no altar pra fugir com o outro. Estava grávida do primeiro, mas ficou com o segundo. Mesmo casada com Ruy, não parava de flertar e até mesmo transar com Zeca. Ritinha teve um comportamento geralmente reservado aos homens nas telenovelas. Fez-se de vítima, teve sucesso e conseguiu o que queria. Em sua última frase disse a Ruy e Zeca: "eu gosto muito de vocês, mas gosto mais de mim". Ritinha é mais um grande personagem de Isis Valverde. A sereia conquistou e enraiveceu o público. Talvez ainda não estejamos preparados para essa inversão dramatúrgica. 

Para onde você olha, vê mulheres fortes nesse universo de Glória Perez. A Bibi de Juliana Paes trocou o mocinho pelo vilão. E da maneira mais "vil" para um macho-alfa: colocou-lhe um par de chifres. Depois incendiou restaurante, pegou em armas e viveu no luxo proporcionado pelo dinheiro do tráfico. Bibi era possessiva e ciumenta, batia na rival e dizia: "o Rubinho é meu homem". Intensa, Bibi rivalizou com Jeiza nesse universo de mulheres poderosas desenhado pela autora. Glória Perez deu à Bibi a chance da "redenção". Depois de presa, escreveu um livro e acabou nos braços do primeiro amor ao som de Eu te amo, de Chico Buarque. 


Diante da força de tantas mulheres, a correta atuação de Débora Falabella ficou um pouco ofuscada. As veteranas Elizângela e Betty Faria roubaram as cenas em que apareceram. No último capítulo então, a mãe de Bibi arrancou lágrimas do público a cada aparição. Parabéns também para Mariana Xavier, linda e fora dos padrões consagrados pela ditadura da magreza. 


Donato, o motorista que à noite se transformava em Elis Miranda também foi outro golaço da autora. Eurico, na versão rediviva de Jesse Valadão, poderia cair no ridículo. Essa talvez pudesse ser a trama que deixasse a desejar. No entanto, Humberto Martins deixou-o caricato, mas verossímil. Martins acertou em cheio na sua difícil missão. É, a nova ordem deixa algumas pessoas atônitas mesmo. Além disso, Glória nos deu Elis Miranda, mais uma mulher na galeria inesquecível dessa novela e uma homenagem à querida Rogéria que nos deixou. 

A cena de Ivan tirando as bandagens após a cirurgia e vendo o resultado da retirada dos seios está na história. Vamos pensar na representação. O personagem retira o curativo e mostra o peito nu. Sem os seios, símbolo da feminilidade. Ivan foi forte quando quis deixar de ser mulher. E na sua cena final, mais um recado de Gloria Perez, sexualidade não tem a ver com gênero, Ivana gostava de Claudio, Ivan também. O casal celebrou o amor.

Se há 5 anos Avenida Brasil arrebatou o país por ter entendido o momento socioeconômico de uma classe C emergente, A Força do querer conquistou o público por ilustrar a “primavera” da diversidade e a ressignificação do papel da mulher na sociedade brasileira.   

Talvez a homenageada maior seja a própria Gloria Perez. A grande sucessora de Janete Clair, entre as autoras. Uma mulher que teve que juntar os cacos depois da devastadora morte da filha e seguir em frente, mostrando a força do querer continuar viva, a força do querer continuar forte.


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