sábado, 7 de outubro de 2017

O bombeiro chorou

O bombeiro chorou






A gente faz jornalismo com o que traz dentro da gente. Se não for assim, fica falso e fica chato. Acho que isso sempre foi o que mais me fascinou nessa profissão. Há quase 20 anos fiz uma das matérias mais fortes da minha vida. Era um domingo no mês de novembro, em 1998. Era um domingo e eu tinha chegado no plantão praticamente virado. Estava de ressaca também.

No entanto, a gente faz jornalismo com que traz dentro da gente, inclusive ressacas. Era um domingo abafado, daqueles que você apela para Deus, Buda ou no que acreditar para que o dia transcorra leve, sem problemas. Naquilo que meus alunos classificam hoje em dia como "suave".

Estávamos eu o Luiz Andre Ferreira na redação. Lembro-me que ele estava envolvido com alguma matéria especial e eu correria para qualquer eventualidade, o que acabou acontecendo

Um sobrado na Rua do Livramento, pertinho da rádio Tupi caíra. Com as ruas vazias no domingo a chegada ao local foi bem rápida. O relógio marcava perto das 13h e os termômetros no mês de novembro são inclementes no Rio de Janeiro. 

O cenário era devastador. O que era uma casa velha virou um amontoado de pedras desmoronadas. Embaixo dos escombros, quatro crianças aguardavam socorro. Os bombeiros tentavam retirar as pedras para salvar os meninos. Ao lado deles, duas mães desesperadas gritavam, esperando as respostas das crianças. Era uma forma de ajudar na localização embaixo daquela pilha de destruição.

As ruas internas da Zona Portuária antes do “banho de loja” olímpico eram degradadas, várias casas em condições deploráveis, marquises escoradas com madeiras e fachadas descascadas davam a ideia que as vésperas do século 21, o local não saíra do século 19. Havia alguns cortiços, como o que tinha desabado e deixado as quatro crianças soterradas.

O resgate era demorado e tinha que ser feito cuidadosamente. Cada movimento para retirada das pedras poderia significar mais um desmoronamento. Os bombeiros corriam contra o tempo e tinham na fragilidade da estrutura que restara uma inimiga pronta a encerrar o êxito da operação.

Pouco mais de uma hora depois a primeira criança é retirada. A mãe se abraça ao menino sujo de terra e chorando muito, os bombeiros levam o menino dali para o atendimento apropriado. Ela e a outra mão companheira de dor e angústia não arredavam o pé. O resgate da primeira criança deu mais esperanças às duas. Logo em seguida os bombeiros ouviram uma segunda criança. A mulher que ainda estava com os dois filhos embaixo dos escombros identificou a voz como sendo de um deles. Porém, a vida não é tão "de exatas" assim, a criança encontrada era o outro filho da primeira mulher. O contraste entre dor e alívio estava refletido nas expressões daquelas mães. Para uma, o drama terminara bem...

Os bombeiros intensificavam as tentativas de resgate, três horas... Quatro horas... Do meio das escavações um bombeiro levanta as mãos e faz um sinal encerrando as buscas. O que ninguém queria que acontecesse se tornou real. As duas crianças foram encontradas mortas.

Quase 20 anos após a tragédia, ainda sinto o peso daquela cena. O sol inclemente, os gritos da mãe, a decepção no olhar de quem conhecia as crianças e as lágrimas incontidas daqueles que acompanhavam o resgate.

A gente faz jornalismo com que traz dentro da gente, mas jornalista tem que vestir uma capa, tem que se manter firme e dar a notícia. No rádio, por causa das características do veículo, você tem que fazer a transmissão. Era isso que eu fazia, no ar o apresentador Marco Aurélio conversava comigo e eu fazia um relato do que estava acontecendo. Entrei muitas vezes no ar naquele dia. No rádio a notícia anda, você não espera acabar para entrar. Rádio é simultâneo e instantâneo.

Só uma coisa saiu do script do manual de redação. A reação dos bombeiros. Eles choravam enquanto colocavam as crianças de 2 e 4 anos em pequenos caixões. Esse detalhe me despertou do “transe profissional”. Experiente, Marco Aurélio percebeu que eu engasguei, assumiu a transmissão e a produtora Cristina Freitas conversou comigo e me confortou  até que eu me recuperasse e retomasse o flash.

O choro dos bombeiros, bem mais acostumados com essas situações, funcionou como um balde d´água fria que me acordou. A gente faz jornalismo com o que traz dentro da gente. Alegria, tristeza, riso e choro fazem parte da vida.

Tudo isso voltou quando vi os caixões das vítimas da creche em Janaúba. As crianças tiveram algozes diferentes, no caso que eu reportei/vivi foi o descaso do poder público em não resolver o problema da habitação, permitindo que aquela casa continuasse com moradores. Na cidade mineira foi um homem que não nos deixa esquecer que tem gente que a maldade que traz dentro de si transborda e atinge a todos. Força e resiliência para as famílias das vítimas dessa tragédia inexplicável em Minas.




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