domingo, 8 de outubro de 2017

Ouvinte, uma surpresa a cada curva





No ano de 2012 vivi uma das experiências mais gratificantes da minha carreira. Fui comunicador da Rádio Globo. Apresentei um programa chamado Domingueira da Globo. Ia ao ar, como o nome deixa óbvio na noite internacional da depressão, a pré-segunda-feira. 

O programa era um grande desafio, pois entraria no ar no lugar do Quintal da Globo, atração conduzida brilhantemente por Marco Aurélio durante 10 anos. Eu só havia apresentado na CBN, na Radio Globo eram outros 500. 

Na Rádio Globo o ouvinte participa ao vivo. Isso não acontecia na CBN. Fui para o microfone nas duas emissoras. Hoje digo com tranquilidade. Não se trata de dizer que é mais fácil apresentar em uma ou outra. O que se deve fazer é entender seus diferentes estilos. O comunicador da Rádio Globo pode "rasgar o peito", como diz meu amigo Roberto Canazio. O âncora da CBN tem que ser mais preciso, mais enxuto, cirúrgico. Os dois devem ter personalidade, mas na CBN a estrela inconteste é a notícia, enquanto na Globo, o comunicador ocupa este papel.

Talvez a conversa direta com o ouvinte no ar faça essa diferença se acentuar. No ritual de passagem de âncora eventual na CBN para comunicador da Rádio Globo -que eu trabalhei- estivesse a interação com o ouvinte. 

Nas primeiras oportunidades em que apresentei na Rádio Globo ouvi a condenatória avaliação "está muito CBN". Acho honestamente que consegui modificar essa característica. Não me tornei o maior comunicador do país, mas consegui fazer muitas coisas das quais me orgulho. 

Do grande Loureiro Neto ouvi talvez o melhor elogio à Domingueira:. "O programa está redondinho, me deito para ouvir, e não consigo pegar no sono até o programa acabar”. 

Eu não era estranho ao horário de domingo à noite. Substituí Marco Aurélio em algumas oportunidades, mas mesmo nestas, evitava os ouvintes. Há um grande comunicador, histórico mesmo, que dizia que ouvinte era para ouvir, se fosse para falar deveria se chamar falante. Mas há certos mitos que não merecem ser derrubados. Por esse motivo, não revelarei o nome do cidadão. 

A aguerrida e talentosa produtora Cíntia Brand convenceu-me que a conversa com o ouvinte era fundamental. De tanto insistir, acabei cedendo. 

Quando planejávamos o programa, pedi uma coisa à equipe: não quero fazer Radiojornalismo. Não era desconsideração pelo que fiz na minha carreira inteira, mas é que domingo de noite eu queria me divertir. 

Para deixar as coisas mais leves e mostrar que a proposta era diversão propus para o primeiro programa o seguinte tema de pesquisa: "Você colocaria sua filha na aula de futebol"? Na verdade a provocação vinha na segunda pergunta: "E seu filho na aula de balé"?

A equipe no estúdio era formada por mim, Cíntia e operador Pinguim. Eu fui fazendo os outros quadros do programa. Só pensava naquele momento de inflexão, naquele mergulho no escuro. O encontro com o ouvinte, esse ente que pode levantar ou arruinar o comunicador. 

Não tinha mais como adiar. Cíntia olhava pra mim e perguntava quando entraria o ouvinte? Quando não deu mais para adiar colocamos “seu” José, de São Gonçalo. 

Acho que me defino como aquelas pessoas que "pegam amizade fácil". O começo da conversa foi tranquilo.

- Olá “seu” José, como estão as coisas em São Gonçalo, tudo bem?
- Tudo, é muito bom falar na Rádio Globo.
- Vamos participar da pesquisa?
- Vamos
- O senhor colocaria sua filha na aula de futebol?
- Claro, isso não tem nada a ver. A gente tem a Marta, joga um bolão, mais do que muito marmanjo. 
-Isso aí “seu” José, mas vem cá, o senhor colocaria seu filho na aula de balé?
- Meu filho? Meu filho... (aí pensei: "deu ruim", agora ele vai me xingar). Até colocaria, se ele estivesse vivo. Ele desapareceu há 8 anos. Não tenho notícias dele. Já soube que mataram ele, mas ninguém me devolveu o corpo...

Minha cabeça entrou numa espiral. Aquela sensação pré-desmaio. A total reversão de expectativa. Era para ser uma brincadeira e o cara larga aquela bomba no meu colo. 

Olho para Cíntia e Pinguim em busca de conforto e solidariedade. Encontro os dois escondidos embaixo da mesa, rindo horrores da minha inusitada situação. Eu estava irremediavelmente só. 

Respirei fundo. Toda essa descrição elaborada nos dois curtos parágrafos acima demorou não mais que dois segundo em tempo real. No rádio não há tempo a perder. A vida é a arte do improviso. Rádio é vida. Procurei abrigo nos livros de auto-ajuda que não li, e nos clichês que a vida nos ensina enquanto ganhamos tempo. De comunicador engraçadinho me transformei num pregador carismático com frases de estímulo e conforto. 

Daquele dia em diante percebi que uma das coisas mais gratificantes de estar no ar é poder conversar com os ouvintes, conhecer suas histórias e suas opiniões. Entrar na casa deles é um privilégio e um desafio. 

Tenho muito a agradecer a Cíntia pela insistência em colocar ouvintes no ar. Mas a gratidão eterna será ao “seu” José de São Gonçalo. Tenho absoluta certeza de que nosso encontro radiofônico naquela noite de domingo foi muito mais útil pra mim do que pra ele. Espero que passados 5 anos, a dor dele esteja mais sob controle. 

8 comentários:

  1. Está situação deixaria ate nosso mestre maior Haroldo de Andrade desconfortavel. Ufa...

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  2. Acho que ouvinte pode, sim, expressar a opinião, porque a ele devemos a audiência e o sucesso do trabalho. Mas deve ser de forma bem moderada! Eu gosto mais do estilo Tadio Globo. O modelo CBN de hoje não me agrada. Ele é autoritário. Eu tive o prazer é privilégio de ter participado da equipe com C A Vizeu, que inaugurou a CBN, em 1992. Aquele modelo, mais solto e mais leve, eu gostava. Mas rádio se faz com criatividade e creio, nem sempre temos que fazer aquilo que o ouvinte quer. A Radio Globo de outrora, se foi. E não sei quando volta! Esse seu relato traduz o radio antigo e mais acolhedor, principalmente para o apresentador.

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  3. O cominicador é um ser humano também. Essa é a magia. Lhr dar com as emoções são aprendizados da vida.

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  4. Putz! Um "acidente de percurso" de peso...

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  5. Adorei! Muitos 'seu' José precisam ser ouvidos. Ouço muitos e muitas, como dizem agora, mas no 'particular', 'ao vivo', deve ser outra história. Experiências marcantes.

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