sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

O hiper-realismo nada sutil de O outro lado do Paraíso





A literatura brasileira é uma antes e outra depois de Machado de Assis. Como afirmam alguns especialistas, ao se libertar estilisticamente de seu amigo José de Alencar, Machado inaugurou o Realismo brasileiro em Memórias Póstumas de Brás Cubas. 

E como são deliciosos o cinismo e as observações desconcertantes que o narrador faz durante toda a história. O fato de um morto narrar a ação estabelece uma cumplicidade cínica com o leitor, que embarca no banquete de ironias proposto pelo escritor. 

Walcyr Carrasco tenta avançar alguns passos nessa relação usando um estilo que poderíamos chamara hiper-realista. Já que seria estranho colocar um narrador para fazer essa mediação, ele usa os diálogos como reiteração explícita do que pensam os personagens. As falas vociferam aquilo que qualquer um de nós pensa. No entanto, colocamos o filtro da “necessária” hipocrisia social e falamos veladamente.

Claro que em alguns momentos de desabafo, somos sinceros e tiramos o tal filtro hipócrita. No entanto, os personagens de O outro lado do Paraíso parecem estar constantemente em “desabafo”. E ao elevar o nível de tensão nos diálogos, o autor corre o risco de fazer uma obra neurótica.  

Houve um capítulo em que a personagem de Marieta Severo dirigiu-se à filha que tem nanismo e falou: “eu tenho vergonha de você. Eu gerei um monstrengo”. 

No diálogo posterior ao flagrante da mãe no filho gay, mais crueza. Numa última tentativa de mentir, o filho vai tentar convencer a mãe e ouve a frase: “eu sei a diferença entre uma cueca e uma calcinha”. 

Os diálogos do núcleo que tem Luiz Melo e Eliane Giardini são tão patéticos que beiram o inverossímil. Não há meias palavras. O juiz fala em “acordo financeiro” para dar sentenças. As planilhas apreendidas no escritório da Odebrecht mostram que há apelidos e eufemismos para tratar do assunto. Acho que falta ao texto da novela a frase clichê “menos é mais”. 

Então são todos acometidos por esse hiper-realismo. O médico, sempre frio com a mulher enfermeira, dá-lhe um tapinha provocativo ao passar pelo corredor e é chamado de macho-alfa por ela.
No Realismo de Machado de Assis, Brás Cubas era ácido. Ele se dirigia ao leitor para falar das hipocrisias e relações falsas entre os personagens do livro. Até por estar morto, não constrangia seus personagens com suas observações. No hiper-realismo de O outro lado do Paraíso, o autor não se preocupa que um personagem se choque com a fala do outro. Estão todos em tom de histeria. Não há variação no tom de Sofia, sempre má, sem fazer nenhum esforço para esconder a vilania.

Parece que Walcyr Carrasco transferiu para os textos a serem decorados todas as rubricas no roteiro antes usadas para ajudar na caracterização. No teatro de revista de Carlos Machado com certeza funcionava melhor. As personagens parecem todas em busca de um bordão, quase como o Félix de Amor à vida, que era uma fábrica de memes.

Gael é agressor de mulher estereotipado, Sofia é uma vila estereotipada, Clara, cega pelo ódio, é estereotipada. Parece não haver complexidade na elaboração dos personagens. 

E lá vai o estereótipo clichê. A personagem com nanismo ganha um sapato de salto e pergunta se o presente é porque ela é anã.  A vilã chama a filha anã de monstrengo. A curandeira da cidade não dá valor ao dinheiro. O advogado é o herói sem defeitos. Depois de tudo que Glória Perez avançou em A força do querer, ver os passos para trás em termos dramaturgia de O outro lado do Paraíso é uma pena. 

Apesar de ser um sucesso de audiência, a novela tem algumas tramas para decolar. O personagem de Glória Pires não se resolve. O recesso judiciário acabou e Clara não entrou com pedido de guarda do filho, que segundo ela própria, é a coisa mais importante na sua volta do hospício. 

As personagens de Laura Cardoso e Fernanda Montenegro estão subaproveitadas. Com diálogos pobres, apenas enunciam parte do mistério. 

E por que a novela faz tanto sucesso? A trama, apesar de nada original, é universal e boa. As musicas são maravilhosas e a fotografia de tirar o fôlego. 

No entanto, acho que o autor tem varias pontas para amarrar e com a novela chegando à metade do caminho, tem coisas que ele simplesmente vai deixar para lá. 


A novela é um desfile de clichês, o hiper-realismo rouba-lhe sutileza e proposta artística. É uma novela caça-níquel. Pragmaticamente, não está errada, artisticamente, deixa a desejar. 

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