terça-feira, 17 de abril de 2018

Dona Ivone Lara e as sementes do Egito

Ouvi durante uma aula do mestrado que sementes esquecidas durante milênios nas pirâmides do Egito não perderam a capacidade de germinar. Tendo em vista que a aula era de Teoria das Narrativas, fiquei na dúvida se era verdade ou mito. 

Então, caro leitor, não tome como verdade científica, aceite apenas o significado poético da frase. Uma semente ficar esquecida milênios e se manter íntegra é sinal de que a essência pode ser preservada. 

Cabelos caem, barrigas crescem, articulações se desgastam, mas a capacidade de sonhar permanece intacta. Sonhar é a nossa capacidade de germinar. 

Os projetos nascem nos sonhos, depois, como canta Beto Guedes, preenchem de horizontes o tempo acordado de viver. Nos meus sonhos converso com meus pais e com todas as pessoas especiais que já convivi e não posso mais ver neste plano. 

Quem sabe a aparição deles na hora em que durmo seja essa essência das sementes do Egito. Aparecem porque continuam a germinar mesmo que já tenham deixado meu convívio diário há 15, 20, ou 25 anos. 

As sementes do Egito se prestam a todo tipo de metáfora. Elas são campeãs de resiliência. Foram esquecidas e esperaram milênios pra voltar a fazer o que delas se esperava: gerar novas vidas. 

A existência delas faz com que a gente entenda também a nossa dimensão diante da natureza. As sementes não obedecem a uma escala humana de temporalidade. Enquanto alguns privilegiados chegam a uma centena de anos, elas estão há milênios conservadas. 

Numa licença permitida pela prosopopeia , podemos dizer que as sementes do Egito testemunharam guerras, mudanças de Faraós, a queda de Roma, de Constantinopla e da cabeça de Maria Antonieta. Elas viram as derrotas de Napoleão e Hitler, a marcha de Mao -Tsé-Tung e a chegada homem à lua. 

As sementes do Egito são o eu-lírico da Canção “Eu nasci há 10 mil anos atrás”, de Raul Seixas. Elas permanecem, nenhuma pessoa que você conhece, viveu ou viverá o que elas já passaram em uma existência. 

Quando você estiver se sentindo o dono da situação, crente que é o maioral, pense nas sementes do Egito, elas terão o dom de devolver você à condição humana e mortal. 


Há ainda uma forma de sobreviver. É por meio de sua obra. A música de Dona Ivone Lara, por exemplo, será como as sementes do Egito. Vai germinar sonhos por muitas gerações. 

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