domingo, 14 de outubro de 2018

Lapa invisível - “Se você julga as pessoas não tem tempo para amá-las”

A irmã Joana tem menos de 1,5m. Fala com um sotaque paulista de São José dos Campos. Ela é uma das religiosas que distribuem comida de segunda a sexta a cerca de 200 moradores de rua , na Travessa dos Matosinhos, 14, na Lapa. 

A freira pertence à Congregação das Missionárias da Caridade, fundada pela Santa Teresa de Calcutá. Com seu jeito caridoso, dá um chega pra lá no discurso “não dê o peixe, ensine a pescar”. “Eles chegam aqui com fome, é emergencial. Se não der comida eles morrem de fome”. 

Irmã Joana explica que a distribuição de alimentos começa às 16h, mas as primeiras pessoas sentam em frente ao portão do número 14 às 11h. Para quem passa pela Lapa, a casa das missionárias da caridade fica num velho sobrado, com fachada degradada como a maioria das construções da vizinhança. 

Ela explica que há um certo código de ética urbana, que só quem vive a situação entende: “uma vez pintamos a fachada, mas logo picharam. Seria bom se a gente conhecesse algum grafiteiro. Quando é um desenho, os pichadores não sujam”. 

Depois de ouvir essa frase da irmã Joana, percorri as ruas da Lapa até meu carro estacionado e percebi o respeito ao código de ética. Na Rua Joaquim Silva, bem perto da Escada Selaron, tem um desenho de Tim Maia preservado, cercado por pichações. 

Não há nada suntuoso no local. Apenas o espírito de caridade. Irmã Joana explica que eles vivem um “milagre por dia”.  Certa vez, a hora do almoço se aproximava e elas não tinham nada para dar aos pobres: “começamos a rezar. Dali a pouco tocou o telefone. Era a representante de um supermercado perguntando se a gente tinha como buscar comida já pronta. Os funcionários entraram em greve. A comida ia ser desperdiçada. Paramos uns táxis e fomos buscar. Tinha tanta coisa, que a gente conseguiu guardar algumas comidas para servir nos outros dias. 

Às quartas-feiras a rotina do almoço ganha mais um desafio. É o dia que elas abrem os três chuveiros da casa para que os moradores de rua tomem banho. A fila também é bem grande, segundo a religiosa. Elas emprestam a toalha, um sabonete e pasta de dente. 

Quando há roupas, elas oferecem aos mais necessitados. As irmãs lavam as toalhas usadas pelos moradores de rua. Pergunto se elas têm máquina de lavar. Ela ri e responde: “não, é nossa vocação. Lavamos as toalhas na mão”. 

A casa também acolhe 16 pessoas. São aqueles em situação de rua, que estão ali por abandono da família, por exemplo. Mas há desempregados e desalentados. Eles ficam distribuídos em dois dormitórios com 8 camas cada um. 

Nas cabeceiras recordações de uma outra vida. Um deles se diz primo de uma pessoa famosa do carnaval. Na mesinha, uma foto dos dois abraçados. Outro tinha um velho radinho de pilha ao lado da cama. 

Irmã Joana explica que alguns não conseguem se acostumar com a realidade da casa: “tem um que esconde comida entre as roupas dele. É por causa do tempo que morava na rua, quando tinha que pegar o máximo para comer quando não tivesse mais nada”. 

A disciplina das religiosas é comovente. Um dos voluntários levou um bolo de chocolate para que elas comessem. Irmã Joana delicadamente rejeitou. Ela explicou que elas não comem fora do horário estabelecido. Ficou contente: “Hoje vai ter merenda mais tarde” e depois deu uma gargalhada. 

É impossível não se comover com a realidade encontrada ali. Da sacada do velho sobrado, que deve datar do fim do século XIX, é possível observar imponentes prédios do Centro financeiro do Rio. 

As freiras são pequenas heroínas, vivendo de milagres diários.  Pessoas que só veem sentido na vida se for dando ajuda a quem precisa. Não há discurso de ódio, são conselheiras, caridosas e lutadoras. Gostaria de ter saído do mesmo barro que elas. São invisíveis, trabalhando pela dignidade de outros tantos invisíveis. Quando vemos quem não tem onde morar, o que comer e o que vestir descortina-se um quadro terrível à nossa frente e no meio da tela um letreiro pisca: “Onde foi que erramos”?

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